Os Contos de Fada e A Criança de Sentido Indizível

O imaginário exerce, na realidade, o papel de encenador das condições psíquicas [...] (KRISTEVA, 2002).

No texto “A criança de sentido indizível", a filósofa-psicanalista Júlia Kristeva nos apresenta relatos do tratamento de uma criança de três anos – Paul - com dificuldades neurológicas no campo linguístico. A criança não proferia qualquer palavra, não suportava o diálogo entre os pais e recusava a troca de palavras entre o terapeuta e a mãe (p.116). Para Kristeva os retardos na aquisição da linguagem ou dificuldades na aprendizagem das categorias lógicas e gramaticais, quando menores, não afetam o acesso ao simbólico na criança, quando possibilitada a essa uma ampla e intensa utilização do imaginário. Explicando sua colocação, a autora passa a definição do que chama de simbólico e de imaginário.

O simbólico seria o exercício do discurso segundo regras lógicas e gramaticais da interlocução, e o imaginário, aponta a autora, figura a representação de estratégias de identificação, introjeção e projeção, que mobilizam a imagem do corpo, as do ego e as do outro, e que utilizam os processos primários (deslocamento e condensação) (p.113). A partir dessas especificações, a autora acaba por esclarecer em seus conceito de psicologia a função da literatura infantil e suas histórias que, atemporais, como nos casos dos contos de fadas, ainda hoje caem no gosto de toda e qualquer criança.

O processo utilizado, então, pelo terapeuta para ajudar a criança de sentido indizível a lidar com as dificuldades aparentes, parte das histórias infantis, mais especificamente de contos de fadas - histórias que estruturam o sujeito, criando assim as precondições das categorias lingüísticas (KRISTEVA, p.122). A conhecida história de Collodi, a história de Pinóquio , é a primeira que se apresenta, seguida da igualmente famosa Bela Adormecida, antiga lenda oral registrada por Perrault. Assim, os contos são abordados e tratados por Kristeva a partir de sua função primordial - não como mero entretenimento-, tal qual na visão de Cashdan que diz: os contos de fada possuem muitos atrativos, mas transmitir lições não é um deles.

Diferentemente do que se poderia pensar, os contos de fadas não foram escritos para crianças, muito menos para transmitir ensinamentos morais (ao contrário das fábulas de Esopo). Em sua forma original, os textos traziam doses fortes de adultério, incesto, canibalismo e mortes hediondas que eram transmitidas oralmente em praças, festas e reuniões, para um público pra lá de adulto. Aliás, criança na época a qual nos referimos sequer era reconhecida como tal, quiçá protegida por direitos e estatutos como se dá hoje. Não existia o universo infantil, as crianças eram apenas parte da população, eram vistas, e tratadas, como adultos em miniatura. O conceito de criança conforme o compreendido atualmente começou a ser estruturado somente lá pelo início do século XIX, porém as versões infantis de contos de fadas, devidamente expurgadas e suavizadas, apareceram já no século XVII, pelas mãos de Charles Perrault.

Voltando ao texto de Kristeva e atestando a coerência do uso de histórias literárias no auxílio ao desenvolvimento do menino Paul trazemos a concepção de Sheldon Cashdan. O autor-psicólogo afirma, em seu livro “Os 7 pecados capitais nos contos de fadas: como os contos de fadas influenciam nossas vidas”, que os contos de fada seriam psicodramas da infância espelhando lutas reais, e, segue o autor, embora o atrativo inicial de um conto de fada possa estar em sua capacidade de encantar e entreter, seu valor duradouro reside no poder de ajudar as crianças a lidar com os conflitos internos que elas enfrentam no processo de crescimento (CASHDAN, 2000, p.25).

O modo pelo qual os contos de fada resolvem esses conflitos é oferecendo às crianças um palco onde elas podem representar seus conflitos interiores. As crianças, quando ouvem um conto de fada, projetam inconscientemente partes delas mesmas em vários personagens da história, usando-os como repositórios psicológicos para elementos contraditórios do eu. [...] Cada um dos principais contos de fadas é único, no sentido em que trata de uma predisposição falha ou doentia do eu. Logo que passamos do "era uma vez", descobrimos que os contos de fada falam de vaidade, gula, inveja, luxúria, hipocrisia, avareza ou preguiça - os "sete pecados capitais da infância". Embora um determinado conto de fada possa tratar de mais de um "pecado", em geral um deles ocupa o centro da trama.(2000, p.28)

Na história, a criança se projeta momentaneamente nos personagens e penetra no mundo da fantasia, vivenciando um contato mais estreito com seus sentimentos e elaborando seus conflitos e emoções. Desta maneira, ela cresce e se desenvolve. A história funciona como uma ponte entre o real e o imaginário. Como bem o explica Aroeira, "[…] Por meio da história, a criança observa diferentes pontos de vista, vários discursos e registros da língua. Amplia sua percepção de tempo e espaço e o seu vocabulário". Ela desenvolve a reflexão e o espírito crítico, pois a partir da leitura, "[…] Ela pode pensar, duvidar, se perguntar, questionar (1996, p.141). A Literatura Infantil é fonte inesgotável de assuntos para melhor compreender a si e ao mundo, então à criança, como disse Kristeva, devemos possibilitar e facilitar o acesso ao imaginário.
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KRISTEVA, Júlia. As novas doenças da alma. RJ: Rocco, 2002, p. 113-122.
CASHDAN, Sheldon. 'Os 7 pecados capitais nos contos de fadas: como os contos de fadas influenciam nossas vidas'. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
AROEIRA, Maria Luísa Campos. Didática de pré-escola: vida e criança: brincar e aprender. São Paulo: FTD, 1996, p. 167.
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