Modelo Memorial Descritivo

Desde cedo a política fizera parte de minha vida. Tão logo completei meus estudos escolares passei a trabalhar com legisladores e, aos 20 anos, fui nomeada assessora parlamentar - cargo que desempenhei por mais de dez anos junto a Assembléia Legislativa do Estado. Após alguns anos servindo à política, finalmente chegou o momento do despertar, percebi que precisava de algo mais, necessitava aprender. Passei revista em minhas predileções, a fim de averiguar a qual curso estaria eu predisposta a me dedicar com fruição, para qual ‘saber’ eu mostrava aptidão fora a minha atual profissão – pensava que política fosse definitivamente minha carreira. A resposta foi imediata, indubitavelmente a leitura era o meu maior prazer e a linguagem o meu contexto, visto que vivia em meio a discursos - políticos em geral são exímios oradores. Então, entre história, sociologia e ciências políticas, optei por Letras, curso no qual reuniria língua, texto e minha paixão maior, literatura.

A literatura está presente em minhas mais remotas recordações. Lembro que quando criança Dorothy tornou-se minha heroína – coragem, determinação e bondade foram minhas primeiras noções de literatura. Apaixonei-me, já na 5° série, pelo Menino sem Pátria e seu violino, e descobri com Pollyanna, a menina que inventara o jogo do contente, que livros também fazem chorar. Recobradas as memórias infantas e associados os interesses maduros ingressei, aos 29 anos, no curso de Letras do Centro Universitário Ritter dos Reis.

Logo no primeiro semestre vi minhas expectativas diminuídas quando percebi que a proposta do curso era intrinsecamente voltada ao ensino, à formação de professores, e a possibilidade de estar à frente de uma sala de aula nunca me ocorrera, até então. Pensei em desistir, mas insisti e no segundo semestre vi reavivada minha certeza ao estudar Teoria da Literatura com a professora Rejane Pivetta. A alegoria da caverna me trouxe à luz. Aristóteles, verossimilhança, mimesis; narradores diversos, perfis psicológicos de personagens, conceitos primeiros que me apontaram o caminho. Acertei o rumo, determinei minha área de estudo e, semestre a semestre, fui envolvendo-me e atendendo ao chamado do poeta Drummond: penetra surdamente no reino das palavras.

Mas nem tudo são flores no caminho do conhecimento e assim, ao tempo em que me deleitava com estudos de que era favorável, via-me às voltas com novos conceitos e feliz assisti meus preconceitos gradativamente descolorirem-se. Relutei em aceitar de pronto os argumentos de Marcos Bagno, que insistia em “aprovar o errado”, mas,  ao participar como monitora do V Seminário de Linguagem, Discurso e Ensino, a palestrante Eni Orlandi significou-me a linguística e tornou visível a minha falta de clareza e compreensão acerca da complexidade da língua. Mais tarde, Marcuschi, Kleiman e Koch descortinaram a verdade e minha relação com a linguística tornou-se doce pelas aulas da professora Vera Pires, que não só me facilitou o entendimento, como também atestou a possibilidade de estudar Saussure, Benveniste e Bakhtin com deleite.

Também na literatura, área de minha adoção, encontrei percalços no caminhar, mas segui a trilha sem pestanejar, convicta que estava de que mais do que saber era preciso conhecer. Assim, tanto os incautos literatos portugueses Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco e Saramago, quanto o inconcebível Macunaíma foram importante para minha formação enquanto leitora e professora de literatura. O amargo ficou doce quando foram esses amenizados, contrabalanceados pela professora Regina Silveira ao propor-nos Machado de Assis, Mia Couto e, a salva portuguesa, magnânimo Camões. Ironicamente, nas aulas da professora Leny Gomes, vi Homero ser salvo por Dante, o Inferno a serviço da fatídica Ilíada. Ainda que tais leituras tenham me proporcionado poucos e rasos dissabores, cito-as por serem obras representativamente importantes ao meu processo evolutivo, pois a partir dessas leituras pude definir-me, pude apurar meu gosto, desenvolver minha capacidade crítica e argumentativa. Sem tais obras não as teria afinadas como hoje, creio que é importante provar os diversos sabores de que a literatura é capaz.

Ao gosto da literatura, no quarto semestre produzi o trabalho monográfico que reafirmaria minha área de estudo e tornaria real a possibilidade de um mestrado. A partir de um projeto de pesquisa iniciado no segundo semestre com o apoio da Professora Rejane Pivetta, no quarto semestre, desenvolvi a monografia titulada Século XXI - A presença de jovens escritores do Rio Grande Sul. No trabalho acadêmico realizei, ainda que recortadamente, a identificação dos novos escritores do nosso Estado – que, fora do cânone literário, movimentavam e renovavam a literatura -, pretendendo, assim, um levantamento sobre o fazer literário contemporâneo. Compreendia, mesmo que empiricamente, que a literatura podia ser estudada para além das obras literárias. Instintivamente atentara para a literatura vista como uma rede de relações, concebia-a de forma relacional e sistêmica, como mais tarde me orientaram Pierre Bourdieu e Itamar Even-Zohar. Não imaginava que essa seria a chave às portas que eu viria a abrir, a resposta a que me importunava Drummond: trouxeste a chave?

Já encantada com o Curso de Letras, mais uma vez presenciei minhas pré-concepções esmaecerem-se diante da proposta de trabalhar como educadora no ProJovem – São Leopoldo, programa do Governo Federal de incentivo a aprendizagem e qualificação de jovens. Mesmo com algumas restrições, visto que acreditava que o ensino não era minha vocação, aceitei e constatei que eu estava aparamentada de muitos conceitos, várias idéias, algumas teorias e pouca prática, ao que soletrei Paulo Freire. A experiência foi repleta de significados e importantes aprendizados. Pude averiguar a proporção exata do prejuízo conferido a esses jovens, então meus alunos, por conta de um sistema falho e arcaico de ensino, por conta de uma pedagogia, como muito bem definiu Fernando Becker, da reprodução do autoritarismo, da coação, da heteronímia, da subserviência, do silêncio, da morte da crítica, da criatividade, da curiosidade (2001).

Entre as três turmas que assumi, o meu saldo de alunos contava com noventa jovens. Uma quase centena de adolescentes sem perspectiva de futuro e sem nenhuma motivação para a sala de aula que não a promessa, desleal, de uma colocação no mercado de trabalho. Exemplos reais, vítimas da pedagogia do oprimido de que fala Paulo Freire. Coloquei em prática minhas lições e apliquei a proposta a que me orientaram os professores Flávio Lunardi e Neiva Tebaldi e que ali considerei e comprovei ser a mais eficaz - a análise linguística em detrimento à aula de gramática. Analisamos e entendemos textos de diversos gêneros, ao modo bakhtiniano. Estivemos em contato com a literatura através da biblioteca pública do município, a qual apresentei uma proposta de parceria e fui atendida com as honras do então secretário de cultura de São Leopoldo. Compartilhamos conhecimentos, produzimos nossos próprios textos e saímos, ainda que incertos diante do futuro, vitoriosos com o presente contextualizado que tecemos juntos.

Veni, vidi, vici. Saí convicta de que sala de aula é minha vocação e professora a minha mais nova profissão. Desde então, vejo-me sempre em volta de uma sala de aula. Além do estágio obrigatório no ensino fundamental, desenvolvi junto ao UniRitter a Oficina de Reforma Ortográfica e o Minicurso de Português: Produção do Texto Acadêmico, ambos para alunos de graduação, ambos desafios igualmente bem sucedidos.

Chegada ao sexto semestre, participei como bolsista voluntária de iniciação científica no projeto de Pesquisa Literatura e Produção de Conhecimento, com orientação da Professora Rejane Pivetta. Novos horizontes, novas perspectivas. A pesquisa oportunizou-me o contato com teorias e conceitos que me faltaram ao trabalho monográfico e com os quais convivi demoradamente, já que no início do ano de 2010 passei à bolsista titular da FAPERGS, dando continuidade ao projeto de pesquisa que edificou minha proposta de mestrado. A pesquisa de que falo foi a consagração de minhas buscas. Ao estudar autores da sociologia do conhecimento, minhas teorias e ideias de estudos literários foram se moldando às concepções de Boa Ventura de Souza Santos - e sua percepção de paradigmas dominantes nos estudos científicos - e Pierre Bourdieu, sociólogo que desvendou “as regras da arte”.

No último ano no Curso de Letras, a chave de que me perguntava Drumonnd revelou-se de ouro e as oportunidades, todas, eu aproveitei. Participei como membro da comissão julgadora do 5° Concurso Leve um Poema para a Feira, promovido pela editora Uniritter. Tive o privilégio de assistir ao Professor de Galiza Elias Feijó Torres, no curso de extensão Estudos Literário: novas possibilidades de aplicações culturais, aprimorando minhas concepções de literatura e de sistema cultural, alicerces de minha proposta de estudo no mestrado. Participei, ainda, pondo em teste meus dotes de oradora, dos salões de iniciação científica da UFRGS e do UniRitter, quando apresentei os resultados parciais da pesquisa Literatura e Produção de Conhecimento.

A consagração de meus esforços deu-se com a possibilidade de concorrer a uma bolsa para a pós-graduação. Reuni minhas capacidades adquiridas ao longo de todo o processo acadêmico e, orgulhosa, elaborei meu projeto de pesquisa para o mestrado. À luz dos conceitos advindos de teóricos como Bourdieu e Even-Zohar edifiquei minha proposta denominada Estratégia de atuação dos jovens escritores no sistema literário do Rio Grande do Sul. A literatura será finalmente diplomada como a minha área de estudo e, com esse projeto, pretendo investigar os fatores envolvidos na movimentação literária ocorrente no espaço sociocultural do Rio Grande do Sul, observando a literatura, como assertivamente pensei possível antes, como uma rede de sistemas que se estendem para além das obras. A minha pesquisa de mestrado buscará restabelecer as funções da literatura ao passo que possibilitará a compreensão das dinâmicas literárias. Para tal feito, recobrando minhas confissões aqui registradas, contarei com o apoio e a orientação daquela que desde o início desta descrição provou-se minha orientadora por excelência, mesmo desconhecendo a função, professora Rejane Pivetta.

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Comentários

  1. Como estou trabalhando uma oficina com os alunos do PIBID o memorial descritivo, achei pertinente e de muitas boas ideias o seu texto e o passei aos alunos, como exemplo. Porém, coloquei a fonte . Sou professora de Literatura e Língua Portuguesa e me encanto com textos bem redigidos em que, além do conteúdo, nos passam a vivência do autor e nos convencem com seus escritos. Parabéns!
    Espero sua visita no blog aliteraturanaescola-helena-blogspot.com para compartilharmos ideias sobre o ensino da literatura.
    Um abraço

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