O Aspecto Social em Bakhtin e Vigotski


Embora os trabalhos de Vigotski e de Bakhtin se sustentem em objetivos e campos de investigação científica diferentes - Vigotski na área da psicologia do conhecimento e Bakhtin da filosofia da linguagem -, em ambos os autores podemos observar “a base comum cultural e ideológica de que surgem” seus fundamentos (PONZIO, 2008, p. 71).

Ambos teóricos nasceram na Rússia, desenvolveram suas ideias na União Soviética marxista, em meados da década de 1920, e foram igualmente vítimas de perseguições. Recusaram o comportamentalismo marxista e refutaram “a concepção dos fenômenos psíquicos como estados simplesmente subjetivos” (PONZIO, 2008, p.73), entendendo que as especificidades dos fenômenos psíquicos humanos residem na intermediação, e são “produzidos e empregados dentro de formas sociais concretas” (idem, p. 79).

 Adotando a conclusão de Freitas, “Ambos são marxistas que valorizaram a consciência” (1995, p. 158), compreendendo em seus estudos uma perspectiva sócio-histórica. Ainda que contemporâneos, não há registros [1] de que Vigotski e Bakhtin se conhecessem , fato que não invisibiliza a aproximação de suas teorias, já observado que ambos privilegiaram o aspecto cultural e social em seus fundamentos, construindo “uma perspectiva histórica e uma compreensão do homem como conjunto de relações sociais” (FREITAS, p. 157).

Ambos teóricos consideram, assim, a linguagem como fator fundamental no processo de conhecimento do mundo e entendem que a constituição dos sujeitos se dá nas interações sociais, assim “como Vigotski, Bakhtin se opõe a reduzir a reação verbal a um fenômeno de caráter unicamente fisiológico, do qual se exclui o elemento sociológico” (PONZIO, 2008, p.73). Para os autores o conceito de signo, de linguagem verbal ultrapassa a concepção de simples instrumento transmissor de significados. São, além disso, instrumentos de significação e de manifestação social do organismo.


Maria Teresa de Assunção Freitas buscou evidenciar essas convergências de ideias que buscamos retratar aqui, e em seu livro Nos textos de Bakhtin e Vigotski: um encontro possível, esclarece que os dois teóricos “tentaram encontrar a dialética do subjetivo e do objetivo, mediada pelo fenômeno da linguagem”. 

Por isso a linguagem é uma questão central em seus sistemas. [...] Destacaram aí o valor da palavra e da interação com o outro. Consciência e pensamento são tecidos com palavras e ideias que se formam na interação, tendo o outro um papel significativo. [...] Buscaram explicar e compreender, a partir de uma perspectiva social, os fenômenos intrapsíquicos e linguísticos. (FREITAS, 1995, p. 158-159)
 

 O SOCIAL EM VIGOTSKI

Vigotski, ao elaborar uma “teoria social do conhecimento” - buscando reconstruir a origem e o processo de desenvolvimento do comportamento e da consciência -, “procurou a possibilidade de o homem, através de suas relações sociais, por intermédio da linguagem, constituir-se e desenvolver-se” (FREITAS, 1995, p. 158).

Marta Kohl Oliveira, autoridade em estudos vigotskianos, explica que como a linguagem é o sistema simbólico comum entre os homens, o seu desenvolvimento e suas relações com o pensamento é objeto central na obra de Vigotski, para quem “O pensamento não é simplesmente expresso em palavras; é por meio delas que ele passa a existir” (2006, p. 54). O teórico, segundo Oliveira, trabalha com duas funções básicas da linguagem: o intercâmbio social – principal função da linguagem - e o pensamento generalizante – que torna a linguagem um instrumento do pensamento. (2006, p. 42-43) e em ambos observamos o caráter social que os sustenta.

A principal função é a de intercâmbio social: é para se comunicar com seus semelhantes que o homem cria e utiliza os sistemas de linguagem. [...] Para que a comunicação com outros indivíduos seja possível [...] é necessário que sejam utilizados signos, compreensíveis por outras pessoas, que traduzem idéias, sentimentos, vontades, pensamentos [...]. (OLIVEIRA, 2006, p. 42)
[...] é a função generalizante da linguagem que a torna um instrumento do pensamento. Ao se utilizar da linguagem o ser humano é capaz de pensar de uma forma que não seria possível se ela não existisse: a generalização e a abstração só se dão pela linguagem. (OLIVEIRA, 2006, p. 51)
A unidade dessas duas funções encontra-se no significado que é a propriedade que propicia “a mediação simbólica entre o indivíduo e o mundo real, constituindo-se no “filtro” através do qual o indivíduo é capaz de compreender o mundo e agir sobre ele” (OLIVEIRA, 2006, p. 48). Para Vigotski  o pensamento  está intimamente vinculado à linguagem e se desenvolve a partir de instrumentos linguísticos e pela interação sócio-cultural do falante..  Assim, para o teórico, é na troca com outros sujeitos e consigo próprio que se internalizam os saberes, papéis e funções sociais, o que permite a formação de conhecimentos e da própria consciência.


O SOCIAL EM BAKHTIN

Bakhtin, em sua filosofia da linguagem, compreendida a partir de uma concepção histórica e social, diz que a compreensão dos signos dá-se em ligação com a situação, o contexto em que ele toma forma e esse contexto, essa situação é sempre social. O signo ideológico na constituição do sujeito, afirma Bakhtin, parte do exterior para o interior, ou seja,  do social para o individual, e a palavra nada mais é do que produto de interação viva das forças sociais.

Na construção de sua filosofia da linguagem, o autor passa a valorizar a fala – a enunciação -, deixada de lado por Saussure. Opera este o resgate do sujeito nos estudos linguísticos, pensando as relações da linguagem como um todo, vista do ponto de vista da interação humana. Os conceitos de Bakhtin se contrapõem à concepção de língua como sistema sem sujeito, pois é preciso “considerar que o organismo humano não pertence a um meio natural abstrato, mas faz parte integrante de um meio social específico” (p.53).

Para Bakhtin a língua é a “realidade material específica da criação ideológica” (p. 25). Na visão do filósofo da linguagem, a ideologia é algo intrínseco ao semiótico, pois “o domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico” (BAKHTIN, 1999, p. 32).

A ideologia para o círculo de Bakhtin, conforme explica Faraco, comporta várias esferas ideológicas, que identificam áreas da produção intelectual humana, ideologia “é o nome que o Círculo costuma dar, então, para o universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais” (2010, p.46). Para o Círculo, então, todo e qualquer enunciado se dá na esfera de uma das ideologias, ou seja, no interior de uma das atividades humanas. Sendo o sujeito um ser social, imerso em uma determinada cultura, logo todo enunciado expressa consigo o posicionamento do sujeito, com o que, para o Círculo não há enunciado neutro. Faraco apresenta a seguinte definição de ideologia:

Algumas vezes, o adjetivo ideológico aparece como equivalente a axiológico. Aqui é importante lembrar que, para o Círculo [de Bakhtin], a significação dos enunciados tem sempre uma dimensão avaliativa, expressa sempre um posicionamento social valorativo. Desse modo, qualquer enunciado é, na concepção do Círculo, sempre ideológico – para eles, não existe enunciado não ideológico. E ideológico em dois sentidos: qualquer enunciado se dá na esfera de uma das ideologias (i.e., no interior de uma das áreas da atividade intelectual humana) e expressa sempre uma posição avaliativa (i.e., não há enunciado neutro; a própria retórica da neutralidade é também uma posição axiológica). (FARACO, 2010, p. 47)
Tudo que é ideológico possui um significado e é, portanto, um signo, conclusão que se reflete na afirmativa de Bakhtin que diz que sem signo não existe ideologia, firmando com isso que o universo da criação ideológica é de natureza semiótica. A ideologia, uma vez que é constituída pelo semiótico, é inerente à consciência. Bakhtin acredita que os signos foram criados nas relações interindividuais, portanto, são carregados de valores conferidos por diferentes interlocutores. Com isso conclui que a consciência, além de ideológica, é social.


Meu pensamento, desde a origem, pertence ao sistema ideológico e é subordinado às suas leis. Mas, ao mesmo tempo, ele também pertence a um outro sistema único, e igualmente possuidor de suas próprias leis específicas, o sistema de meu psiquismo. O caráter único desse sistema não é determinado somente pela unicidade de eu organismo biológico, mas pela totalidade das condições vitais e sociais em que esse (BAKHTIN, apud SOUZA, 1994, p. 114)


A separação da língua de seu conteúdo ideológico constitui um dos erros mais grosseiros do objetivismo abstrato. Assim, a língua, para a consciência dos indivíduos que a falam, de maneira alguma se apresenta como um sistema de formas normativas. O sistema linguístico tal como é constituído pelo objetivismo abstrato não é diretamente acessível à consciência do sujeito falante, definido por sua prática viva de comunicação social (BAKHTIN, p. 96).
____________________________
[1]Maria Teresa de Assunção Freitas, em seu livro Nos textos de Bakhtin e Vigotski: um encontro possível, registra que encontrou duas notas na obra de Bakhtin – o freudismo (1925) – que fazem referencia ao artigo A consciência como problema do comportamento de Vigotski, o que mostra, segundo a autora, que “Bakhtin sabia da existência de Vygotsky, lera um artigo seu e o citava em seu livro um ano depois”. (1995, p.156)

___________________________


REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1999.

FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.

FREITAS, Maria Tereza de Assunção. Nos textos de Bakhtin e Vigotski: um encontro possível. São Paulo: Contexto, 1995.

A consciência na obra de L.S. Vigotski: análise do conceito e implicações para a Psicologia e a Educação Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 79-86. http://www.scielo.br/pdf/pee/v14n1/v14n1a09.pdf

OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento – um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 2006.

PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Contexto, 2008.

SOUZA, Solange Jobin e. Infância e Linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. 6° Ed. Campinas, SP: Papirus, 1994.

VIGOTSKI, Lev Semenovich. Pensamento e linguagem.



ARQUIVO CULTURA DE TRAVESSEIRO

Comentários