Diálogos Socráticos

ENTREVISTA COM SÓCRATES

Por  Angela Francisca e Karine Campos



Um homem superior, que enfrenta a multidão ignorante com serenidade, despeito e senso de humor. Um verdadeiro santo profano. Foi esta a visão de Sócrates, imortalizada por seu mais importante e famoso biógrafo, Platão. Ícone da tradição filosófica, fundador da atual filosofia ocidental, o Sócrates dos diálogos platônicos é um dos personagens mais bem construídos da nossa literatura. Homem sábio, preocupado com o progresso intelectual e que dedicou a vida em busca da verdade e do conhecimento, concede entrevista exclusiva a mestrandas no Atheneu de Porto Alegre.

Entrevistador: Pois então, Sócrates, muito do que se conhece sobre suas ideias são através de obras de discípulos seus como a exemplo do renomado Platão. Tu consideras que Platão tenha transcrito com fidelidade suas ideias, e o fato de não ter deixado para a posteridade manuscritos próprios, não lhe causa arrependimentos?

Sócrates: Antes de responder-vos, precisamos definir o que é fidelidade. Os meus discípulos, na tentativa de defender minha memória e reproduzir meus diálogos, podem ter atribuído a mim respostas mais brilhantes do que as que realmente de mim partiram. Sem, contudo, desvirtuarem-se de minha essência, não te pareces ser assim? Quanto à inexistência de produções manuscritas de minha autoria, citar-vos-ei o mesmo argumento outrora exposto a Fédro, no qual se conclui o seguinte: se alguém expõe as suas regras de arte por escrito e um outro vem depois, que aceita esse testemunho escrito como sendo a expressão sólida de uma doutrina valiosa, esse alguém seria tolo e atribuiria maior valor às teorias escritas do que a um simples tópico para a rememoração do assunto tratado no escrito, não é assim?


Entrevistador: Conheço tua retórica e sei que és propenso a embaraçar os seus interlocutores, levando-os a destruir conceitos fundamentados em ilusões de conhecimento a respeito  da verdade das coisas. Portanto, não quero travar polêmica. O meu objetivo é obter de ti respostas precisas e exatas sobre suas ideias e conceitos. Não te parece que a noção de verdade pertence a uma retórica de poder, na qual  prevalece o direito de alguns de falar com a autoridade a que alguns outros deveriam obedecer? A teoria da verdade é uma disputa  de estabelecimento e reafirmação das relações de superioridade e inferioridade, de dominação e submissão. Realmente acreditas que a essência da filosofia seja a busca pela verdade?

Sócrates: Oh divina cabeça! A mera exposição de conceitos em nada vos acrescentaria, pois o papel do filósofo, como todos sabem, é trazer à luz a verdade. Antes de prosseguirmos, faz-se mister definirmos um conceito comum de verdade para não cairmos na armadilha de tomarmos a opinião como simples e único alimento. A verdade a que me refiro é aquela que atrai as almas para a sua contemplação, reconhecendo nela o alimento que as pode satisfazer inteiramente, o único alimento capaz de libertar essas almas das terrenas paixões. Depois de termos contemplado a essência das coisas, dizer-vos-ei que a inteligência humana deve exercer-se segundo o que designamos como Ideia, indo desde a multiplicidade das sensações a uma unidade cuja abstração é a verdade racional. Sendo assim, não me parece absurda a afirmação de que busco, enquanto filósofo, trazer à luz a verdade, ainda que a verdade esteja vinculada a uma relação de poder, pois em caso “guerra” não conheço arma mais eficiente do que o conhecimento. Conhecimento é Poder e poucas são as almas detentoras do dom de reconhecer a verdade. Muitos em face dela ficam perturbados e mal se percebem de si mesmos, quiçá da verdade posta em análise, e digo-vos: uma vida sem exame não vale a pena ser vivida.


Entrevistador: Partindo de tuas colocações anteriores, parece-me que tua predileção pela oralidade favorece o surgimento de uma visão fragmentada de conhecimento e consequentemente do homem, já que conhecimento para ti é manifestação do pensamento racional. Neste ponto, é possível que possamos enxergar, de certa forma, em ti um oráculo para nossos dias?

Sócrates: Mirífico companheiro, só sei que nada sei. Parece que toda a ciência parte da necessidade de responder à arte da retórica  que consiste em uma arte de conduzir a alma através das palavras mediante discurso, não só nos tribunais e locais públicos, mas também em qualquer espécie de assembléia privada...

Quem não conhecer a verdade, mas só alimentar opiniões, transformará naturalmente a arte retórica numa coisa ridícula que nem sequer merece o nome de arte.

Por isso, se pretendemos iludir alguém sem nos iludirmos a nos mesmos, cumpre-nos conhecer com exatidão e em por menor as assimelhanças e dissemelhanças do objeto.

Sócrates: Não a verdade constituída de ideias pré-estabelecidas. Estou disposto a juntar-me a ti para investigarmos em conjunto, pois é difícil conhecer as coisas sem que as investiguemos percorrendo juntos os argumentos. Estou disposto a aprender e a ouvir não só a ti, mas também a outra pessoa qualquer. Como bem sabes, sou filho de mãe parteira e me considero nascido (as ideias só nascem de reflexões morosamente apuradas). Nada posso esclarecer, mas estou disposto a investigar contigo: “ há um antigo provérbio que diz: as coisas belas são difíceis quando se trata de aprender (PLATÃO, Crátilo, 43)”, pois o mal está no conhecimento em si ou naquele que presunçosamente acredita conhecer?

FIM: E agora chegou a hora de nos irmos, eu para minha morte, vós para a sua vida... quem de nós fica com a melhor parte ninguém sabe... exceto os deuses!








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