Quarta Lição: A Formação dos Estudos Culturais - Maria Elisa Cevasco

(Livro em pdf aqui)

Cevasco em seu livro Dez Lições sobre Estudos Culturais (2003),  aponta que o campo dos estudos culturais ainda é novo e, por isso, ainda em expansão. No quarto capítulo, ou na Quarta Lição - A formação dos estudos Culturais,  a autora faz um recenseamento dos registros bibliográficos que deram início a esses estudos.

Stuart Hall, que segundo Cevasco é um dos mais conhecidos nomes dentro dos estudos culturais, aponta três textos basilares do campo de estudos que estudamos aqui, obras que “configuram uma quebra com a tradição dos modos de estudar os fenômenos sociais”:




The Uses of Literacy (1957), de Richard Hoggart.

Culture and society (1958), de Raymond Williams.

The making the English Working Class (1963), de Edward P. Thompson.

“Esses trabalhos rejeitavam não só o elitismo da alta cultura e da grande tradição, mas também o marxismo reducionista, entendido como a determinação forte pela economia” (GREEN, apud CEVASCO, 2003, p. 61).


ENSINO DEMOCRÁTICO



Os Estudos Culturais começaram como um empreendimento marginal, desconectado das disciplinas e das universidades, a partir de uma necessidade de estabelecer uma educação democrática para aqueles que tinham sido privados dessa oportunidade.



Os três teóricos citados, Hoggart, Williams e Thompson, foram professores da Worker’ Educational Association (WEA), uma educação de esquerda para a educação de adultos trabalhadores.

A WEA defendia uma educação pública e igualitária que promulgasse os valores de uma cultura em comum, em contraposição aos esforços elitista dos adeptos da cultura de minoria dos Scrutiny e do treinamento social dado pelos fabianos. Procurava construir uma nova consciência social.

Para superar a educação como mecanismo de imposição de valores de classe dominante, os professores tinham que mudar o que ensinavam: temas discutidos tinham relação com a vida dos alunos; as disciplinas, em função disso eram interdisciplinares; os interesses dos alunos se voltava para as modificações culturais em curso no seu cotidiano. Assim , novas práticas foram tomando forma.


ARMAÇÕES TEÓRICAS

A armação teórica inicial dos EC - conceber os produtos artísticos como materialização de uma formação sócio-histórica - exige uma revisão do modos de descrever a inter-relação arte-sociedade.

Raymond Williams, em cultura e sociedade, aponta a dificuldade de estabelecer essas inter-relações.


O problema não preocupa, é claro, a crítica idealista, para quem as artes se dão em um domínio separado da vida social, lidando com valores atemporias e eternos. No campo oposto, o materialismo, descrição mais convincente é a do marxismo, que exprime o problema complexo da determinação por meio da metáfora da base e da estrutura. (CEVASCO, 2003, p.65)
A visão de Marx, no âmbito da crítica cultural, desbanca as acepções idealistas da cultura e sublinha a interdependência dos elementos ditos superestruturais e a produção material da vida social, abrindo um campo de explicação da cultura e sua relação com as formas materiais de e desenvolvimento social.

Mas na "transição de Marx para o marxismo" houve uma tendência em ressaltar as determinações econômicas e uma das tarefas dos EC no momento de sua formação é juntar a sua teprização a de outros pensadores influentes do marxismo cultural e refinar os modos de pensar a determinação da cultura pela base econômica.

Williams repensa a metáfora base/superestutura, seu determinismo econômico e a tendência elitista interpretadas por estudiosos a partir dessa metáfora:

A metáfora da base-estrutra abre espaço para a colocação das artes em um domínio separado, obscurecendo o fato de que a produção artística é ela mesma material, não só no sentido de que produz objetos e notações, mas também no sentido de que trabalha com meios materiais de produção. A questão central é levar até as últimas consequências a contribuição do materialismo histórico, acabando de vez com descrições idealistas e logrando ver as artes como práticas reias, elementos de um processo social totalmente material, e não como "um reino separado das artes e das ideias, da ideologia, da estética, ou da seperestrutura, mas de muitas práticas produtivas e variáveis, com intenções específicas e condições determinadas. (CEVASCO, 2003, p. 67)


No momento de formação dos EC, haviam novas perspectivas de estruturas sociais, entre os anos 50 e 60, que a possibilitaram. Ciclo expansivo pós-guerra, revoluções libertadoras do terceiro mundo,  movimentos de massa, o capitalismo tardio (mudança de estrutura de capital, longe de termos uma sociedade pós-industrial, temos pela 1° vez na história uma industrialização universal generalizada, que penetra em todos os setores da existência – da agricultura à recreação e é claro à produção cultural).
A expansão da quantidade dos meios de produção cultural possibilitou a percepção clara de uma qualidade definidora desses meios, ou seja, são práticas de produção que fazem uso coletivo de meios materiais como, para dar alguns exemplos, a linguagem, as tecnologias da escrita ou os meios eletrônicos de comunicação, a fim de dar forma aos significados e valores de uma sociedade específica. Esses significados são culturais, adquirem existência perceptível por meio dessas formas culturais, e são modificados na medida em que entram em conjunção com pessoas em situaçõe específicas que os podem aceitar, modificar ou recusar. Assim, não é de admirar que Williams, Hoggart e Thompson tenham se interessado pela cultura dos de baixo, buscando formas de resistência à cultura capitalista nos significados, valores e reconhecimentos produzidos pelos que o sistema deixa de fora e explora. (CEVASCO, 2003, p. 69)
A percepção facilitada pelo meios de comunicação de massas é que a produção cultural sempre esteve ligada a processos de dominação e de controle social. Williams, agora em seu texto The long revolution, se diz insatisfeito,  e há, para o autor, um trabalho fundamental a ser feito em relação a dominação culturais. Com os "estudos culturais" busca expandir o conceito de cultura e transformar os processos de aculturação abrangentes.

Não se trata aí de uma hipóstase da cultura como o único modo de luta nem do idealismo atroz de pensar que somos nós, estudiosos da cultura, que vamos fazer sozinhos a revolução. Mas trata-se certamente de uma codificação teóroica (e disciplinar - se lembrarmoa que os estudos cuturais vêm daí) de uma percepção da experiência da vida contemporânea, marcada pela expansão vertiginosa dos meios de comunicação pela invasão, pelas necessidades da sociedade das mercadorias, de todas as esferas da vida humana [...]. (CEVASCO, 2003, p. 70)

Sabemos que todas as promessas de revolução da época de formação dos EC não modificaram o mundo, antes foram revertidas em crises econômicas dos anos 70 e reversões ideológicas nos anos 80 e 90 (cita, Margareth Thatcher, Ronal Reagan, etc.) (idem, p. 71)


SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS

Já nos anos 50, com a guerra fria e o terror ao comunismo, instalou-se uma repressão aos movimentos operários. (Com isso possibilitou o florescimento da nova esquerda).

A WEA foi perdendo significação política e seus professores foram absorvidos por universidades. Williams torna-se professor em Cambridge e um pensador original das questões culturais. Thompson professor de Birmingham, fundou o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, que dirigiu até 1968, quando tornou-se assessor da UNESCO passando a direção a Stuart Hall.

A partir de Birmingham, e de alunos ali formados por esses primeiros professores, a disciplina foi sendo instituída em diversas universidades do mundo.

Ainda hoje há dificuldades de definir seus limites enquanto programa acadêmico:

Até hoje há dificuldade de definir seus limites enquanto programa acadêmico. Como projeto interdisciplinar, os estudos culturais se situam em um amálgama de quatro disciplina: estudos das Mídias [...], História, Sociologia e, prinicpalmente, Inglês, mas a ênfase está em diferenciar-se dessas disicplinas. (CEVASCO, 2003 p. 73)



Do inglês retiveram o interesse no texto e na textualidade, incluindo formas populares de cultura. O conceito de literatura é repensado e a lista das grandes obras (o cânone) é ampliada considerando produções silenciadas.

Na história a ênfase recai sobre a memória popular e oral. Das mídias vêm os estudos da relações dos meios de comunicação com a sociedade. Da sociologia o interesse pela etnografia e subculturas.

Talvez o que enfocam os estudos culturais seja menos importante do que como e por que enfocam seus objetos:

O modelo teórico de Williams da interconstituição do projeto intelectual ou artístico e formação sócio-histórica se traduz em uma prática que procura dar conta de pelo menos trâs níveis: o da experiência concreta do vivido, com sua ênfase nos mapas de sentido que informam as práticas culturais de determinados grupos ou sociedades; o das formalizações dessa práticas em produtos simbólicos, os "textos" dessa cultura, texto tomado aí em sua acepção mais abrangente; e o das estruturas sociais mais amplas que determinam esses produtos, momento que exige lidar com a história específica dessas estruturas. (CEVASCO, 2003, p.73)
A questão dos EC era fazer uma crítica engajada da tradição de cultura e sociedade. Era estabelecer ligações orgânicas do trabalho intelectual com grupos sociais. Nesse ponto, o trabalho do intelectual italiano Antonio Gramsci foi fundamental. Para Gramsci todas as pessoas são intelectuais mas nem todos exercem na sociedade a função de intelectual (idem, p. 74).

O centro de estudos da cultura contemporânea de Birmingham buscava se afastar das tarefas habituais dos intelectuais tradicionais e forjar um novo intelectual orgânico. Ocorre que a ligação entre uma disciplina universitária institucionalizada com movimentos e grupos sociais é problemática.

Os primeiros trabalhos que saíram do centro mostram como esses esforços se traduzem na prática acadêmica: Mantinham-se a frente das discuções publicando na New Left Review as principais correntes de esquerda que havia no mundo, passaram a traduzir textos dos marxistas culturais. Preocupavam-se em estabelecer ligações entre pesquisa e grupos sociais. Formavam grupos de pesquisa e escolhiam temas relevantes para o momento e publicavam coletivamente. Dois temas forma importantes nesse primeiro momento: o da sociedade das mídias ( a partir das declarações de Leavis) e as subculturas.

Um dos estudos desse tempo (1976), de John Clark, sobre os Skin-heads, ilustra os ganhos e as perdas dessa nova fase dos estudos culturais universitários. (p.77)

Os EC em meio as suas resoluções e conflitos passam, assim, de prática marginal-radical, a mais uma entre as diferentes disciplinas acadêmicas.

Nesse momentos os Estudos Culturais estão definitivamente "formados". Seu futuro está, como diz Raymond Williams, na tentativa, nem sempre bem sucedida, de levar o melhor que se pode conseguir em termos de trabalho intelectual até pessoas para quem esse trabalho não é um modo de vida ou um emprego, mas uma questão de alto interesse para que entendam as pressões que sofrem, pressões de todos os tipos, das mais pessoais às mais amplamente políticas. (CEVASCO, 2003, p. 78)



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