Raymond Williams - O Pensador da Cultura


 

            Os estudos culturais têm em Raymond Williams seu pensador mais original e consistente, cujas concepções inspiraram Stuart Hall, seu amigo e companheiro de New Left [1]– associação da nova esquerda, fundada nos anos 50. Williams, em seu projeto intelectual, reelabora uma teoria marxista da cultura, ciente de que a maior contribuição do marxismo para a história do pensamento e para as ciências humanas não está exatamente, ainda que intrínseco, no desvelamento do sistema capitalista e suas formações sociais. Está, antes, no método investigativo que utilizou para tais formulações - o materialismo histórico-dialético: “um procedimento metodológico ímpar” por meio do qual Marx construiu “uma leitura da realidade que se apoia no fato empírico, desvelando suas determinações concretas - oriundas de sua historicidade -, gerando uma nova compreensão dessa realidade” (MARZZITELLI, 2011, p.12).
Partindo do materialismo histórico, Williams dedicou-se a pensar uma teoria materialista da cultura que levasse em conta seu papel social. Por materialismo, entendia ele que os bens culturais são resultados de meios de produção, que são materiais, que concretizam relações sociais complexas envolvendo instituições, convenções e formas. O materialismo cultural tem como meta tornar a história cultural em material. Contudo, para firmar essa nova posição teórica, o materialismo cultural, a primeira tarefa de Williams seria a redefinição, ou o aprofundamento, do termo “cultura” que, a partir dessa perspectiva teórica – materialista –, deve ser entendida “como o sistema de significações mediante o qual necessariamente [...] uma dada ordem social é comunicada, reproduzida, vivenciada e estudada” (WILLIAMS, 2011a, p.13).  Assim, parece claro que, não só o campo das artes, mas as várias atividades de apreensão da realidade, dependem de alguma noção de cultura.
            Raymond Williams, diante da complexidade que envolve a definição do termo cultura – ora metáfora agrícola, ora correlata à civilização, ora designando a grande arte - em muitas de suas obras de estudos sociológicos reconstitui historicamente os diferentes sentidos e significados do termo, analisando as mudanças semânticas em suas relações com as mudanças sociais. Essa, em verdade, é uma estratégia recorrente do autor, pois, segundo afirma, no procedimento desse percurso semântico-histórico pode-se desnudar os deslocamentos de significados e a hierarquia de possíveis elementos sociais dominantes imbricados nas palavras. Para Williams, a linguagem não é neutra, é, antes, produtora de sentidos e valores e legitimadora de ideologias. Daí o seu método semântico-histórico que torna possível rastrear o significado das “palavras-chave”:

Quando percebemos de súbito que os conceitos mais básicos – os conceitos, como se diz, dos quais partimos – não são conceitos, mas problemas, e não problemas analíticos, mas movimentos históricos ainda não definidos, não há sentido em se dar ouvidos aos seus apelos. Resta-nos apenas, se o pudermos, recuperar a substância de que suas formas foram separadas. (WILLIAMS, 1979, p.17)

            Começando como nome de um processo – cultura (cultivo) de vegetais ou (criação e reprodução) de animais e, por extensão, cultura (cultivo ativo) da mente humana –, o termo cultura, em meados do século XVIII, passou a designar civilização (civilizado, polido e seu oposto bárbaro). Ao longo do século XIX a palavra adquiriu um tom imperialista – civilizar os bárbaros, tornando-os cultos -, designando o culto às belas artes e grandes obras. Williams chega, então, à reformulação do conceito em seu campo de estudos, a literatura inglesa, que apreendia cultura como uma classificação geral que se dirigia especificamente às artes (assim como à religião e a instituições). Cultura, na versão inglesa dominante até os anos 1960, significava a alta cultura, a grande tradição da literatura inglesa, cuja ação cultural limitava-se a difundir os produtos dessa “alta cultura” entre as demais classes. A concepção da palavra era tomada como produto separado da vida comum, área especificamente centrada nas artes e na educação de poucos privilegiados, mero efeito da superestrutura (no conceito marxista clássico). Segundo a visão de Cevasco, para Williams, em termos teóricos, fazia-se necessário “se contrapor às visões idealistas da cultura que insistem em pensá-la como domínio separado da vida concreta”, (2003, p.110) ou como repositório de valor espiritual, sempre compreendida como superestrutura.

Em contraste com essa concepção, Williams se apropriou da noção, antes mais recorrente em antropologia, de cultura como um modo de vida justamente para demonstrar que se trata de algo comum a toda a sociedade, que inclui, além das grandes obras – modos de descoberta e de criação –, os significados e valores que organizam a vida comum. (CEVASCO, 2003, p.110).

Pensar cultura como “todo um modo de vida”, levou Williams a debater a visão clássica de cultura dentro da tradição inglesa, mais especificamente no campo artístico literário. Em Marxismo e Literatura, o autor afirma que “a teoria literária não pode ser separada da teoria cultural, embora possa ser distinguida dentro dela” (1979, p.145). Seguindo os pressupostos do autor, toda abordagem da teoria marxista da cultura deve iniciar-se considerando os conceitos de base (infraestrutura) e superestrutura, metáfora usada pelo marxismo tradicional para explicar, também, a relação entre arte e sociedade.              A ideia de arte e do pensamento como “reflexos” da realidade – consequência da fórmula de base e superestrutura – é rechaçada pelo teórico britânico. A percepção da contradição - tratar a arte como reflexo, como produto externo separado do homem social, vista a sua inserção cultural -, foi substituída pelo conceito de mediação, uma teoria um tanto mais elaborada, mas que ainda não permite teorizar certas manifestações culturais como produção.          
 Para Williams é a partir do conceito de hegemonia, instituído por Gramsci, que as práticas culturais deixam realmente de ser superestruturais, uma vez que hegemonia é o conceito que “corresponde à realidade da experiência social muito mais nitidamente do que qualquer outra noção derivada da fórmula de base e superestrutura” (WILLIAMS, 2011b, p.52). Trata-se de um “conjunto de significados e valores vivido como prática concreta, e pautado por tensões, transformações e acomodações entre a cultura dominante e o que ele denomina de formas residuais e emergentes”[2]. Porém, propõe o teórico que em lugar da hegemonia, mas a partir de seu fundamento, se adote um modelo de análise que “veja as relações de dominação e subordinação, em suas formas como consciência prática” (WILLIAMS, apud GLASER, 2008, p.137), mas que permita a variação e a contradição, com seus “conjuntos de alternativas e seus processos de mudanças” (WILLIAMS, 2011b, p.52).
            A parte mais difícil de uma análise cultural, ensina Williams, é justamente a que procura apreender o hegemônico em seu processo transformativo, visto que a hegemonia tem como uma das principais funções a incorporação de significados, valores e práticas. Ao processo transformativo liga-se um importante conceito no trabalho de Williams que é o de estrutura de sentimento. Porém, abrimos um parêntese para tratar, ainda que sucintamente, de um assunto bastante caro a literatura – a tradição. Williams, ao falar de arte, mais especificamente de literatura, como habitualmente procede, examina o desenvolvimento histórico social do termo.  Inicia seu percurso pelas conexões de literatura com a alfabetização - com ênfase no aprendizado culto e nos livros impressos. Em seguida, passa à escrita criativa como prática cultural, chegando ao conceito de crítica – “de uma ênfase no uso ou consumo (ostensivo) de obras, mais do que na sua produção” (1979, p.54) -, que logo remete ao de tradição. Williams, em tom crítico, escreve:
 
Assim a categoria que havia parecido objetiva como “todos os livros impressos”, e que havia recebido uma base de classe social como “conhecimento culto”, e como “gosto” e “sensibilidade”, passou a ser uma área necessariamente seletiva e autodefinidora: nem toda “ficção” era “imaginativa”; nem toda “literatura” era “Literatura”. A “crítica” adquiriu uma importância nova e primordial, já que passou a ser a única maneira de validar essa categoria especializada e seletiva. Era ao mesmo tempo uma discriminação das grandes obras, ou das obras maiores, com uma consequente classificação de obras “menores” e de uma exclusão prática das obras “más” ou “desprezíveis” e uma realização e comunicação prática dos valores “maiores”. (WILLIAMS, 1979, p.56).

 
Williams afirma que em qualquer sociedade e em qualquer período “há um sistema central de práticas, significados e valores que podemos chamar especificamente de dominante e eficaz” (2011b, p.53). Em outras palavras, Williams compreende que a cultura se converte num espaço de dominação no qual se reafirma a hegemonia de uma determinada classe dominante. A dominação de classe, porém, depende da legitimação de sua própria dominação, alcançada através da universalização dos significados e valores de uma classe em relação ao conjunto da sociedade. Logo, ao universalizar seus valores e sentimentos, práticas e significados, uma classe instaura a sua hegemonia. Mas para assegurar sua posição de classe dominante, faz-se necessário a reprodução dessa hegemonia que, segundo Williams, encontra na produção cultural, particularmente na literatura, o veículo principal. A partir dessa lógica, conclui-se que a classe dominante instaura o que chamamos de tradição, o que leva o autor britânico, e seus leitores, a questionar não só o conceito de tradição, como também a hierarquização dos padrões estéticos. Contudo, o processo de formação da “tradição” não é, necessariamente, uma imposição, a palavra-chave é seleção, visto que há, sempre, disputa entre o que fará parte ou não de uma tradição literária na qual “certos significados e práticas são escolhidos e enfatizados”, enquanto outros são negligenciados e excluídos (WILLIAMS, 2011b,  p.54). Tal processo de seleção culminou e definiu os valores literários que conhecemos e que ditam o que deve ser considerado “literatura” ou não, baseado no gosto instaurado pela classe dominante. Cevasco aponta que, para Williams, “o que a classe dominante faz é controlar a tradição, instalando o que chamou de ‘tradição seletiva” (CEVASCO apud PASSIANI, 2009, p.291).  
               Raymond Williams preocupa-se em compreender os processos de mudança social a partir do estudo da arte e da literatura. A fim de desvelar como se dá a dominação por meio das obras estéticas, desenvolve o conceito de “estrutura de sentimento”, formulado para explicar “como nossas práticas sociais e hábitos mentais se coordenam com as formas de produção e de organização socioeconômicas que as estruturam em termos do sentido que consignamos à experiência do vivido” (CEVASCO, apud PASSIANI, 2009, p.291). Em suas abordagens, Williams estudou grupos e formações culturais, de onde extraiu sua formulação de estrutura de sentimento e de frações de classe. Para Williams era importante debruçar-se sobre um grupo ou formação cultural, pois, na sua concepção, o artista nunca expressa um ponto de vista isolado e individual, expressa antes o ponto de vista do grupo ao qual pertence. A partir dessa premissa, toda a produção artística pode ser considerada social. Exemplo é o estudo de Williams sobre três importantes formações culturais inglesas: o Círculo de Godwin (séc. XVIII); a Irmandade Pré-Rafaelita (séc. XIX); e o Grupo Bloomsbury (séc. XX). Esse último era de um grupo de amigos com determinadas características em comum, tais como o lugar onde moravam que dá nome ao grupo, um bairro londrino. O grupo Bloomsbury rechaçava a ideia de formação cultural.
            André Glaser, mais uma vez, auxilia na compreensão do que está por trás do  conceito de estrutura de sentimento, chamando a atenção para uma outra definição, “também importante para se ir além da oposição pessoal/social: a consciência prática” (2008, p.151). A consciência prática, também aplicada aos grupos culturais que estudou, responde pelo que é hábito internalizado, a incorporação e naturalização das relações sociais dentro do que vivemos, (2008, p.177). Ainda que pareça óbvio, o social é produção humana, logo, uma ideia fundamental por trás da consciência prática é que toda a produção individual é social e o conjunto de formas de agir, movidos pela consciência prática, é nomeado como estrutura de sentimento.
Segundo exposto, na proposta de Williams o processo de formação de uma cultura, dominante e eficaz, está continuamente ativo e adaptando-se, flexível e abrangente que deve ser. Tal cultura deve reconhecer, diz o autor, os significados e os valores alternativos, que na disputa foram deixados de lado pela tradição seletiva, em detrimento de outros instituídos. Uma sociedade complexa deve considerar “as opiniões e atitudes alternativas” e até mesmo “alguns sentidos alternativos do mundo que podem ser acomodados e tolerados dentro de uma determinada cultura efetiva dominante” (WILLIAMS, 2011b, p.55), uma vez que o conjunto de significados e de valores, as práticas e os modos como experimentados e interpretados são realidades vividas. Não se trata de um sistema estático, uma vez que os membros de uma sociedade também não o são. Williams chama a esse movimento de “processo de incorporação”, considerável conceito para se compreender qualquer cultura dominante eficaz.
          Nenhuma cultura, diz Raymond Williams, pode esgotar toda a gama da prática humana. Com essa afirmativa, voltamo-nos às culturas residuais e culturas emergentes por ele detalhadas. Williams explica que há, nas culturas dominantes, o que podemos de chamar de alternativo e o que é opositor, e dentro dessas há a distinção entre formas residuais e emergentes. Assim define o teórico:

Por “residual” quero dizer que algumas experiências, significados e valores que não podem ser verificados ou não podem ser expressos nos termos da cultura dominante são, todavia, vividos e praticados como resíduos – tanto culturais como sociais – de formações sociais anteriores. [...] Por “emergente” quero dizer, primeiramente, que novos significados e valores, novas práticas, novos sentidos e experiências estão sendo continuamente criados. (WILLIAMS, 2011b, p.56-57)
 
Ressalta Williams que é importante para qualquer sociedade específica a sua capacidade de englobar todo o conjunto de práticas e experiências humanas em sua tentativa de incorporação. É fato que os modos de seleção de uma cultura dominante excluem e negligenciam parte da gama total das práticas humanas reais e possíveis, e a literatura inegavelmente apresenta-se como parte prática na sociedade. Para o intelectual britânico, explica Passiani, “a arte e a literatura, além de formalizarem novas estruturas de sentimento, também têm papel ativo nos processos sociais de incorporação de novos valores e de novas percepções” (2009, p.287). Não restam dúvidas de que o projeto teórico de Raymond Williams propõe uma abordagem que busca abarcar a totalidade social, rompendo com certas teorias e práticas reducionistas.
Williams, opondo-se as duas grandes tradições europeias – a crítica literária idealista e o marxismo ortodoxo e estruturalista -, preocupou-se, como já mencionado, em atualizar um sistema de pensamento, dando-lhe novas formas de acordo com as transformações pelas quais passam a sociedade. Problematizar e propor novas práticas exige uma reformulação de conceitos largamente valorizados que, incorporados como habituais, acabam dificultando uma revisão. Exige, ainda, a reavaliação e construção de novas linhagens teóricas, caminhos, para Williams, possíveis somente a partir do materialismo cultural a que dedicou seus estudos.


REFERÊNCIAS
CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo: Boitempo, 2003.

GLASER, André Luiz. Materialismo cultural. 2008. 236f.  Tese (Doutorado em Letras) USP - Universidade de São Paulo, SP, 2008.
 
MARZZITELLI, Edna. Conhecendo o materialismo histórico e o marxismo: conhecendo Marx. In: V Encontro brasileiro de educação e marxismo. Marxismo, educação e emancipação humana. Florianópolis: UFSC, 2011. Disponível em: http://www.5ebem.ufsc.br/trabalhos/eixo_01/e01b_t008.pdf Acesso em: abr 2012.

 WILLIANS, Raymond. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2011a.
 
 _________. Cultura e materialismo. Trad. André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011b.
 
 _________. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1979.
 
_________. Base e superestrutura na teoria cultural marxista. Revista USP,  São Paulo,  n.66,  ago. 2005. Disponível em: . Acesso em:  15  mar.  2012.
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[1] Ver CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais. SP: Boitempo, 2003.
 
[2] WILLIAMS, Raymond. Base e superestrutura na teoria cultural marxista. Revista USP, São Paulo,  n. 66, ago.  2005 .Disponível em: http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-98920025&lng=pt&nrm=iso  Acesso em:  15  mar.  2012.
 
[3] In: Estética: a ideia e o ideal. Ainda que Hegel conceba a arte como uma manifestação do espírito ou matéria ligada à intuição e a um elevado grau profético. considerações diferente as nossas propostas, coube aqui a sua indagação. "por que cria o homem obras de arte?”.
 
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Comentários

  1. Parabéns pela postagem!
    Angela,a propósito, aceite meu convite e venha ver o texto de número 292 de minha literatura amadora. >>> HEMATÓFAGO no http://jefhcardoso.blogspot.com lhe espera. Abraço e bom final de semana!

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