(A
identidade cultural na pós-modernidade. SP: DP&A Editora, 2003, pág. 47 a
63)
Tendo
descrito as mudanças conceptuais pelas quais os conceitos de sujeito e
identidade da modernidade tardia e da pós-modernidade emergiram, me voltarei,
agora, para a questão de como este "sujeito fragmentado" é colocado
em termos de suas identidades culturais. A identidade cultural particular corra
a qual estou preocupado é a identidade nacional
(embora outros aspectos estejam aí implicados). O que está acontecendo à
identidade cultural na modernidade tardia? Especificamente, como as identidades
culturais nacionais estão sendo afetadas ou deslocadas pelo processo de
globalização?
No
mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das
principais fontes de identidade cultural. Ao nos definirmos, algumas vezes
dizemos que somos ingleses ou galeses ou indianos ou jamaicanos. Obviamente, ao
fazer isso estamos falando de forma metafórica. Essas identidades não estão
literalmente impressas em nossos genes. Entretanto, nós efetivamente pensamos
nelas como se fossem parte de nossa natureza essencial.
O filósofo conservador
Roger Scruton argumenta que:
A
condição de homem (sic) exige que o
indivíduo, embora exista e aja como um ser autônomo, faça isso somente porque
ele pode primeiramente identificar a si mesmo como algo mais amplo - como um
membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, de algum arranjo, ao
qual ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece instintivamente como
seu lar (Scrutori, 1986, p. 156).
Ernest
Gellner, a partir de uma posição mais liberal, também acredita que sem um
sentimento de identificação nacional o sujeito moderno experimentaria um
profundo sentimento de perda subjetiva:
A idéia
de um homem (sic) sem uma nação parece impor uma (grande) tensão à imaginação
moderna. Um homem deve ter uma nacionalidade, assim como deve ter um nariz e
duas orelhas. Tudo isso parece óbvio, embora, sinto, não seja verdade. Mas que
isso viesse a parecer tão obviamente verdadeiro é, de fato, um aspecto, talvez
o mais central, do problema do nacionalismo. Ter uma nação não é um atributo
inerente da humanidade, mas aparece, agora, como tal (Gellner, 1983, p. 6).
O
argumento que estarei considerando aqui é que, na verdade, as identidades
nacionais não são coisas com as quais nos nascemos, mas são formadas e
transformadas no interior da representação. Nós só sabemos o que significa ser “inglês" devido ao modo como a
"inglesidade" (Englishness) veio a ser representada - como um conjunto de significados - pela cultura
nacional inglesa. Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política mas
algo que produz sentidos - um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma
nação; elas participam da idéia da
nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade
simbólica e é isso que explica seu "poder para gerar um sentimento de
identidade e lealdade" (Schwarz, 1986, p.106).
As
culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A lealdade e a
identificação que, numa era pré-moderna ou em sociedades mais tradicionais,
eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram transferidas,
gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura nacional. As diferenças regionais e étnicas foram gradualmente
sendo colocadas, de forma subordinada, sob aquilo que Gellner chama de
"teto político" do estado-nação, que se tornou, assim, uma fonte
poderosa de significados para as identidades culturais modernas.
A
formação de uma cultura nacional contribuiu para criar padrões de alfabetização
universais, generalizou uma única língua vernacular como o meio dominante de
comunicação em toda a nação, criou uma cultura. homogênea e manteve
instituições culturais nacionais,
como, por exemplo, um sistema educacional nacional. Dessa e de outras formas, a
cultura nacional se tornou uma característica-chave da industrialização e um
dispositivo da modernidade. Não obstante, há outros aspectos de uma cultura
nacional que a empurram numa direção diferente, trazendo à tona o que Homi
Bhabha chama de "a ambivalência particular que assombra a idéia da
nação" (Bhabha, 1990, p. 1). Algumas dessas ambigüidades são exploradas no
capítulo 4. Na próxima seção
discutirei como uma cultura nacional funciona como um sistema de
.representação. Na seção seguinte, discutirei se as identidades nacionais são
realmente tão unificadas e tão homogêneas como representam ser. Apenas quando
essas duas questões tiverem sido respondidas é que poderemos considerar
adequadamente o argumento de que as identidades nacionais foram uma vez
centradas, coerentes e inteiras, mas que estão sendo agora deslocadas pelos
processos de globalização.
Narrando a nação: uma comunidade
imaginada
As
culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas
também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso
- um modo de construir sentidos
que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de
nós mesmos (veja Penguin Dictionary of Sociology: verbete “discourse”). As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação",
sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos
estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que
conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. Como
argumentou Benedict Anderson (1983), a identidade nacional é uma
"comunidade imaginada".
Anderson
argumenta que as diferenças entre as nações residem nas formas diferentes pelas
quais elas são imaginadas. Ou, como disse aquele grande patriota britânico,
Enoch Powell: "a vida das nações, da mesma forma que a dos homens, é
vivida, em grande parte, na imaginação" (Powell, 1969, p. 245). Mas como é
imaginada a nação moderna? Que estratégias representacionais são acionadas para
construir nosso senso comum sobre o pertencimento ou sobre a identidade
nacional? Quais são as representações, digamos, de "Inglaterra", que
dominam as identificações e definem as identidades do povo "inglês"?
"As nações", observou Homi Bhabha, "tais como as narrativas,
perdem suas origens nos mitos do tempo e efetivam plenamente seus horizontes
apenas nos olhos da mente" (Bhabha, 1990, p.l).Como é contada a narrativa
da cultura nacional?
Dos
muitos aspectos que uma resposta abrangente à questão incluiria selecionei
cinco elementos principais:
- Em primeiro
lugar, há a narrativa da nação, tal
como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na
mídia e na cultura popular. Essas fornecem uma série de estórias -imagens,
panoramas, cenários,
eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam às experiências
partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que
dão sentido à nação. Como membros
de tal "comunidade
imaginada”, nos vemos, no olho de nossa mente, como
compartilhando dessa narrativa. Ela dá significado e importância à nossa
monótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino
nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte. Desde
a imagem de uma verde e agradável terra inglesa, com seu doce e tranqüilo
interior, com seus chalés de treliças e jardins campestres - "a ilha
coroada" de Shakespeare - até ás cerimônias públicas, o discurso da
"inglesidade" (englishness) representa o que "a Inglaterra" é,
dá. sentido à identidade de "ser inglês" e fixa. a
"Inglaterra" como um foco de identificação nos corações ingleses
(e anglófilos). Como observa Bill Schwarz:
Essas
coisas formam a trama que nos prende invisivelmente ao passado. Do mesmo modo
que o nacionalismo inglês é negado, assim também o é sua turbulenta e contestada
história. 0 que ganhamos ao invés disso... é uma ênfase na tradição e na
herança, acima de tudo na continuidade, de forma
que nossa cultura política presente é vista como o florescimento de uma longa e
orgânica evolução (Schwarz, 1986, p. 155).
- Em segundo lugar, há a ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade.. A identidade nacional é representada como primordial - '`está lá, na verdadeira natureza das coisas", algumas vezes adormecida, mas sempre pronta para ser "acordada" de sua "longa, persistente e misteriosa sonolência", para reassumir sua inquebrantável existência (Gellner, 1983, p. 48). Os elementos essenciais do caráter nacional permanecem imutáveis, apesar de todas as vicissitudesda historia. Está lá desde o nascimento, unificado e continuo, "imutável" ao longo de todas as mudanças, eterno. A sra. Thatcher observou, na época da Guerra das Malvinas, que havia algumas pessoas "que pensavam que nós não poderíamos mais fazer as grandes coisas que uma vez havíamos feito... que a Grã-Bretanha não era mais a nação que tinha construído um Império e dominado um quarto do mundo... Bem, eles estavam errados... A Grã-Bretanha não mudou" (citado em Barnett, 1982, p. 63).
- Uma terceira estratégia discursiva é constituída por aquilo que Hobsbawm e Ranger chamam de invenção da tradição: "Tradições que parecem ser ou alegam ser antigas são muitas vezes de origem bastante recente e algumas vezes inventadas... Tradição inventadasignifica um conjunto de práticas..., de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas; de comportamentos através da repetição, aqual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado". Por exemplo, "nada parece ser reais antigo e vinculado ao passado imemorial do que a pompa que rodeia a monarquia britânica e suas manifestações cerimoniais públicas. No entanto..., na sua forma moderna, ela é o produto do final do século XIX e XX" (Hobsbawm e Ranger, 1.983, p.1).
- Um quarto exemplo de narrativa da cultura nacional
é a do mito fundacional: uma estória que localiza a origem da
nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que eles
se perdem nas brumas do tempo, não do
tempo "real", mas de um tempo "mítico". Tradições
inventadas tornam as confusões e
os desastres da história inteligíveis, transformando a desordem em
"comunidade" (por exemplo, a Blitz ou a evacuação durante a II
Grande Guerra) e desastres em triunfos (por exemplo, Dunquerque). Mitos de
origem também ajudam povos
desprivilegiados a conceberem e expressarem seu ressentimento e sua
satisfação em termos inteligíveis” (Hobsbawm e Ranger, 1983, p. 1). Eles fornecem uma narrativa através da
qual uma história alternativa ou uma contranarrativa, que precede às
rupturas da colonização, pode ser construída (por exemplo, o
rastafarianismo para os pobres despossuídos de Kingston, Jamaica; ver
Hall, 1985). Novas nações são, então, fundadas sobre esses mitos. (Digo
"mitos" porque, como foi o caso com muitas nações africanas que
emergiram depois da descolonização, o que precedeu à colonização não foi
"uma única nação, um único povo", mas muitas culturas e
sociedades tribais diferentes).
- A identidade nacional é também muitas vezes
simbolicamente baseada na idéia de um povo ou folkpuro, original. Mas, nas realidades do
desenvolvimento nacional, é raramente esse
povo (folk) primordial que
persiste ou que exercita o poder. Como, acidamente, observa Gellner:
"Quando [os ruritananos] vestiram os trajes do povo e rumaram para as
montanhas, compondo poemas nos clarões das florestas, eles não sonhavam em
se tornarem um dia também poderosos burocratas, embaixadores e
ministros" (1983, p. 61).
O
discurso da cultura nacional não é, assim, tão moderno como aparenta ser. Ele
constrói identidades que são colocadas, de modo ambíguo, entre o passado e o
futuro. Ele se equilibra entre a tentação por retornar a glórias passadas e o
impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade. As culturas nacionais
são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a recuar
defensivamente para aquele "tempo perdido", quando a nação era
"grande"; são tentadas a restaurar as identidades passadas. Este
constitui o elemento regressivo, anacrônico, da estória da cultura nacional.
Mas freqüentemente esse mesmo retorno ao passado oculta uma luta para mobilizar
as "pessoas" para que purifiquem suas fileiras, para que expulsem os
"outros" que ameaçam sua identidade e para que se preparem para uma
nova marcha para a frente. Durante os anos oitenta, a retórica do thatcherismo
utilizou, algumas vezes, os dois aspectos daquilo que Tom Nairn
chama de "face de Janus" do nacionalismo (Nairn, 1977):
olhar para trás, para as glórias
do passado imperial e para os ..valores vitorianos" e, ao mesmo tempo,
empreender uma espécie de modernização, em preparação para um novo estágio da
competição capitalista global. Alguma coisa do mesmotipo pode estar ocorrendo
na Europa Oriental. As áreas que se separam da antiga União Soviética reafirmam
suas identidades étnicas essenciais e reivindicam uma nacionalidade sustentada
por "estórias" (algumas vezes extremamente duvidosas) de origens
míticas, de ortodoxia religiosa e de pureza racial. Contudo, elas podem também
estar usando a nação como uma forma através da qual possam competir com outras "nações"
étnicas e poder, assim, entrar no rico "clube" do Ocidente. Como tão
agudamente observou Immanuel Wallerstein, "os nacionalismos do mundo
moderno são a expressão ambígua [de um desejo] por... assimilação no
universal... e, simultaneamente, por... adesão ao particular, à reinvenção das
diferenças. Na verdade, trata-se de um universalismo através do particularismo
e de um particularismo através do universalismo" (Wallerstein, 1984,
pp. 166-7).
Desconstruindo a "cultura
nacional": identidade e diferença
A
seção anterior discutiu como uma cultura nacional atua como uma fonte de
significados culturais, um foco de
identificação e um sistema de representação. Esta seção volta-se agora para a
questão de saber se as culturas nacionais e as identidades nacionais que elas
constroem são realmente unificadas. Em
seu famoso ensaio sobre o tema, Ernest Renan disse que três coisas constituem o
principio espiritual da unidade de uma nação: "...a posse em comum de um rico
legado de memórias..., o desejo de viver em conjunto e a vontade de perpetuar,
de uma forma indivisiva, a herança que se recebeu" (Renan, 1990, p. 19).
Devemos ter em mente esses três conceitos, ressonantes daquilo que constitui
uma cultura nacional como uma. "comunidade imaginada": as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da herança.
Timothy
Brennan nos faz, lembrar que a palavra
nação refere-se "tanto ao moderno estadonação quanto a algo mais
antigo e nebuloso - a natio - uma
comunidade local, um domicílio, uma condição de pertencimento" (Brennan,
1990, p. 45). As identidades nacionais representam precisamente o resultado da
reunião dessas duas metades da equação nacional - oferecendo tanto a condição
de membro do estado-nação político quanto uma identificação com a cultura nacional:
"tornar a cultura e a esfera política congruentes" e fazer com que
"culturas razoavelmente homogêneas, tenham, cada uma, seu próprio teto
político" (Gellner, 1983, p. 43). Gellner identifica claramente esse
impulso por unificação, existente nas culturas nacionais:
... a
cultura é agora o meio partilhado necessário, o sangue vital, ou talvez, antes,
a atmosfera partilhada mínima, apenas no interior da qual os membros de uma
sociedade podem respirar e sobreviver e produzir. Para uma dada sociedade, ela
tem que ser uma atmosfera na qual podem todos respirar, falar e produzir; ela
tem que ser, assim, a mesma cultura (Gellner, 1983, pp. 378).
Para
dizer de forma simples: não importa quão diferentes seus membros possam ser em
termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa
identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande
família nacional. Mas seria a identidade nacional uma identidade unificadora
desse tipo, uma identidade que anula e subordina a diferença cultural?
Essa
idéia está sujeita à dúvida, por várias razões. Uma cultura nacional nunca foi
um simples ponto de lealdade, união e identificação simbólica. Ela é também uma
estrutura de poder cultural. Consideremos os seguintes pontos:
- A maioria das
nações consiste de culturas separadas que só foram unificadas por um longo
processo de conquista violenta - isto é, pela supressão forçada da
diferença cultural. "O povo britânico" é constituído por uma
série desse tipo de conquistas - céltica,
romana, saxônica, viking e normanda. Ao longo de toda a Europa, essa
estória se repete ad nauseam. Cada conquista subjugou povos conquistados e suas culturas,
costumes, línguas e tradições, e tentou impor uma hegemonia cultural mais
unificada. Como observou Ernest Renan, esses começos violentos que se
colocam nas origens das nações modernas têm, primeiro, que ser
"esquecidos", antes que se comece a forjar a lealdade com uma
identidade nacional mais unificada, mais homogênea. Assim, a cultura
"britânica" não consiste de uma parceria igual entre as culturas
componentes do Reino Unido, mas da hegemonia efetiva da cultura "inglesa",
localizada no sul, que se representa a si própria como a cultura britânica
essencial, por cima das culturas escocesas, galesas e irlandesas e, na
verdade, por cima de outras culturas regionais. Matthew Arnold, que tentou
fixar o caráter essencial do povo inglês a partir de sua literatura,
afirmou, ao considerar os celtas, que esses "nacionalismos
provinciais tiveram que ser absorvidos ao nível do político, e aceitos
como contribuindo culturalmente para a cultura inglesa" (Dodd, 1986,
p. 12).
- Em segundo lugar,
as nações são sempre compostas de diferentes classes sociais e diferentes
grupos étnicos e de gênero.
O nacionalismo britânico moderno foi
o produto de um esforço muito coordenado, no alto período imperial e no período
vitoriano tardio, para unificar as classes ao longo de divisões sociais, ao
provê-las com um ponto alternativo de identificação - pertencimento comum à
"família da nação". Pode-se desenvolver o mesmo argumento a respeito
do gênero. As identidades nacionais são fortemente generificadas. Os significados
e os valores da "inglesidade" (englishrzess) têm fortes associações masculinas. As mulheres
exercem um papel secundário como guardiãs do lar e do clã, e como
"mães" dos "filhos" (homens) da nação.
- Em terceiro
lugar, as nações ocidentais modernas foram também os centros de impérios
ou de esferas neoimperiais de influência, exercendo uma hegemonia cultural
sobre as culturas dos colonizados. Alguns historiadores argumentam,
atualmente, que foi nesse processo de comparação entre as "virtudes"
da "inglesidade" (Englishness) e os traços negativos de outras culturas que
muitas das características distintivas das identidades inglesas foram
primeiro definidas (veja C. Hall, 1992).
Em
vez de pensar as culturas nacionais unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa
a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas
divisões e diferenças internas, sendo "unificadas" apenas através do
exercício de diferentes formas de poder cultural. Entretanto - como nas
fantasias do eu "inteiro" de que fala a psicanálise lacanianas
identidades nacionais continuam a ser representadas como unificadas.
Uma
forma de unificá-las tem sido a de representá-las como a expressão da cultura
subjacente de "um único povo". A etnia é o termo que utilizamos para
nos referirmos às características culturais - língua, religião, costume,
tradições, sentimento de "lugar" - que são partilhadas por um povo. É
tentador, portanto, tentar usar a etnia dessa forma "fundacional". Mas
essa crença acaba, no mundo moderno, por ser um mito. A Europa Ocidental não
tem qualquer nação que seja composta de apenas um único povo, uma única cultura
ou etnia. As naçõesmodernas
são, todas, híbridos culturais.
E
ainda mais difícil unificar a identidade nacional em torno da raça. Em primeiro
lugar, porque - contrariamente à crença generalizada - a raça não é uma
categoria biológica ou genética que tenha qualquer validade científica. Há
diferentes tipos e variedades, mas eles estão tão largamente dispersos no interior
do que chamamos de
"raças" quanto entre uma
"raça" e outra. A diferença genética - o último refúgio das
ideologias racistas - não pode ser usada para distinguir um povo do outro, A
raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora
daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais
(discursos) que utilizam um conjunto frouxo, freqüentemente pouco específico,
de diferenças em termos de características físicas - cor da pele, textura do
cabelo, características físicas e corporais, etc. - como marcas simbólicas, a
fim de diferenciar socialmente um grupo de outro.
Naturalmente
o caráter não científico do termo "raça" não afeta o modo "como
a lógica racial e os quadros de referência raciais são articulados e acionados,
assim como não anula suas conseqüências (Donald e Rattansi,1992, p.1). Nos
últimos anos, as noções biológicas sobre raça, entendida como constituída de
espécies distintas (noções que subjaziam a formas extremas da ideologia e do
discurso nacionalista em períodos anteriores: o eugenismo vitoriano, as teorias
européias sobre raça, o fascismo) têm sido substituídas por definições culturais,
as quais possibilitam que a raça
desempenhe um papel importante nos discursos sobre nação e identidade nacional.
Paul Gilroy tem analisado as ligações entre, de um lado, o racismo cultural e a
idéia de raça e, de outro, as idéias de nação, nacionalismo e pertencimento
nacional:
Enfrentamos,
de forma crescente, um racismo que evita ser reconhecido como tal, porque é
capaz de alinhar "raça" com nacionalidade, patriotismo e
nacionalismo. Um racismo que tomou uma distância necessária das grosseiras
idéias de inferioridade e superioridade biológica busca, agora, apresentar uma
definição imaginária da nação como uma comunidade cultural unificada. Ele
constrói e defende uma imagem de cultura nacional – homogênea na sua
branquidade, embora precária e eternamente vulnerável ao ataque dos inimigos
internos e externos... Este é um racismo que responde à turbulência social e
política da crise e à administração da crise através da restauração da grandeza
nacional na imaginação. Sua construção onírica de nossa ilha coroada como
etnicamente purificada propicia um especial conforto contra as devastações do
declínio (nacional) (Gílroy, 1992, p.87).
Mas
mesmo quando o conceito de "raça" é usado dessa forma discursiva mais
ampla, as nações modernas teimosamente se recusam a ser determinadas por ela.
Como observou Renan, "as nações lideres da Europa são nações de sangue
essencialmente misto: a França é [ao mesmo tempo] céltica, ibérica e germânica.
A Alemanha é germânica, céltica e eslava. A Itália é o país onde... gauleses,
etruscos, pelagianos e gregos, para não mencionar outros, se intersectam numa
mistura indecifrável. As ilhas britânicas, consideradas como um todo,
apresentam uma mistura de sangue celta e germânico, cujas proporções são
particularmente difíceis de definir” ( Renan, 1990, pp. 14-15). E essas são
misturas relativamente simples se compradas com as encontradas na Europa
Central e Oriental.
Este
breve exame solapa a idéia da nação como uma identidade cultural unificada. As
identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e não
estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de
lealdades e de diferenças sobrepostas. Assim, quando vamos discutir se as
identidades nacionais estão sendo deslocadas, devemos ter em mente a forma pela
qual as culturas nacionais contribuem para “costurar” as diferenças numa única
identidade.
Muito bom o seu post
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