Verão - J.M. Coetzee

texto de Karine Miranda Blog Texto & Pretexto
Aos resgatar a história emocional do personagem Coetzee, o autor John Coetzee cria,  em  Verão,  uma metaficção em torno de si mesmo, revelando a atmosfera de conflitos reais que assolam o continente africano. O livro começa com o relato de uma reportagem, do jornal inglês Sunday Times a 22 de agosto de 1972, sobre um atentado real ocorrido em Francistown, na cidade de Botswana. Homens, aparentemente, negros teriam arrombado uma residência sul-africana, atirando em seus habitantes e depois ateado fogo na casa. Alguns vizinhos ouvem os arrombadores falarem em africânder –  linguagem utilizada por emigrantes de origem holandesa, francesa e alemã que se estabeleceram no sul do continente africano, entre os séculos XVII e XVIII – entre si, supondo que o atentado teria sido cometido por sul-africanos brancos para incriminar, o já segregado, grupo dos negros. É possível inferir que o ódio entre as raças era mantido, em parte, por falsos ataques, mantendo o medo na comunidade branca em relação à comunidade negra. O relato nos remete a outra obra do autor Coetzee, À espera dos bárbaros (2006), cuja narrativa gira em torno de um magistrado que rege um povoado em pânico pela possibilidade de ser atacado por um grupo de bárbaros que jamais aparece. Em nome desse medo os soldados tratam os forasteiros com as piores formas de torturas.


Em outra passagem, podemos observar a desvalorização da comunidade negra pela comunidade branca durante o apartheid. A personagem Coetzee causa espanto em sua vizinhança ao realizar reformas em sua casa com suas próprias mãos, como podemos observar no relato de Julia:
O esquisito é que não era costume, naquela época, um homem branco fazer trabalho braçal, trabalho não especializado. Serviço de cafre, era como se chamava no geral, trabalho que se pagava para alguém fazer. Não era exatamente vergonhoso ser visto mexendo a areia com uma pá, mas era por certo constrangedor, entende?(p. 29)
Ao falar da visita de Breyten Breytenbach, Coetzee nos apresenta uma  importante peronagem de luta contra a segregação racial. O autor nos remete a Lei de Imoralidade (1950) que proibia o casamento e o envolvimento sexual entre pessoas de raças diferentes, considerando essa conduta como um ato de alta traição, sendo o infrator condenado à prisão. No episódio relatado, Breyten, após ter se casado com uma francesa de origem vietnamita, é impedido de regressar ao continente africano. Ele recebe permissão de visto do ministro do Interior para regressar com sua esposa em visita à cidade de Cabo. O autor apresenta a lei como “o esquema utópico de separação forçada de raças”. Seu comentário, supostamente pessoal, ele ainda evidencia a hipocrisia do ato: “A explorar: a inveja que sul-africanos brancos (homens) sentem de Breytenbach por sua liberdade de viajar pelo mundo e seu acesso ilimitado a uma bela e exótica companheira sexual” (p.15). Segundo registros históricos, Breytenbach foi condenado a sete anos de prisão por crime de alta traição, em 1975, ao retornar à África do Sul em uma viagem clandestina.

No relato da brasileira Adriana, por quem a personagem Coetzee teria tido uma paixão “platônica”, é possível detectar a segregação territorial e social existente entre os africânderes e os negros. “Eu nunca simpatizei com africânderes. Conhecia uma porção de africânderes em Angola, trabalhando nas minas ou como mercenários no exército. Eles tratavam os negros como lixo”(p.165). Quando a personagem Coetzee  convida-a para realizar um piquenique com seu pai e suas duas filhas, Adriana relata: “[...], até um parque, não me lembro o nome agora, onde havia pinheiros e locais entre eles onde as pessoas podiam fazer piqueniques, só brancos, claro[...]"( p.175).

Na obra de Coetzee, podemos encontrar um mosaico de ficção e realidade. Fatos reais como a transferência de Nelson Mandela para o presídio de Pollsmoor e seu anterior encarceramento na ilha de Robben, estão presentes na narrativa de uma personagem totalmente ficcional. Através do diálogo entre Vicent e Sophie, o autor parece explicitar o propósito de sua obra:
Madame Denoël, examinei as cartas e os diários. Não dá para confiar no que Coetzee escreve, não como registro factual – não porque ele fosse mentiroso, mas porque ele era um ficcionista. Nas cartas, ele inventa uma ficção de si mesmo para seus correspondentes; nos diários ele faz a mesma coisa para os próprios olhos, ou talvez para posteridade. Como documento, são valiosos, claro; mas quando se quer a verdade, é preciso procurar atrás das ficções ali elaboradas e ouvir as pessoas que conheceram Coetzee diretamente, em pessoa.”Afirma Vicent. “Mas e se fossemos todos ficcionistas, como o senhor chama Coetzee? E se nós inventarmos histórias sobre nossas vidas? Por que o que eu disser sobre Coetzee haveria de merecer mais crédito do que aquilo que ele próprio diz?(p.234)

 O relato é de Adriana, uma bailarina brasileira, mãe de uma de suas alunas, por quem Coetzee teria nutrido uma suposta paixão platônica. Casada com Mario, homem que perseguido pelos militares no Brasil durante a ditadura refugia-se na cidade de Angola com sua esposa e duas filhas. Na cidade de Angola ela trabalhava no Balé Nacional enquanto o marido trabalhava em um jornal, até que o governo decreta estado de emergência e passa a recrutar todos os homens com menos de quarenta e cinco anos, ainda que não fossem naturais da região. Eles precisam permanecer na África por acreditarem que seria muito arriscado regressar ao Brasil, pois, em 1973, o Brasil vivenciava o auge do período ditatorial – e, por isso, decidiram fugir de navio para cidade do Cabo onde passaram a viver junto a um primo de seu marido. “Quando chegamos ficamos com ele e a família, foi difícil para nós, nove pessoas em três cômodos, enquanto esperávamos nossos documentos de residência”. Seu marido sofre um ataque enquanto trabalhava como segurança em um armazém e fica em coma por um ano antes de falecer. Adriana compara o sistema burocrático brasileiro e a existência de “facilitadores”, chamados de despachantes que facilitam o trâmite e a emissão de documentos dentro do Brasil, com a falta de assistência aos brasileiros no território africano, o que fica evidente no trecho:
Se nós fossemos portuguesas teria sido diferente. Havia muitos portugueses indo para a África do Sul naquela época, de Moçambique e Angola, até da Madeira, havia organizações de ajuda aos portugueses. Mas nós éramos do Brasil e não havia regulamento para brasileiros, nenhum precedente, para os burocratas era como se a gente tivesse chegado de Marte ao país deles(p.185-86)
Ao trabalhar como professora de dança latino-americana para um grupo formado em sua maioria por negros, Adriana descreve o grupo com simpatia:
Eu gostava deles. Eram gente boa, amiga, gentil. Tinham ilusões românticas sobre a América Latina, sobre o Brasil acima de tudo. Muitas palmeira, muitas praias. No Brasil, eles pensavam, as pessoas como eles se sentiriam em casa.(p.190-91)
A descrição da personagem Coetzee feita pelas personagens femininas transparece, no primeiro momento, uma excessiva falta de talento para a vida sexual e social, transformando a personagem central em um “desajustado”. As obras de Coetzee costumam apresentar personagens com problemas em manter relacionamentos com mulheres e que constantemente entram em conflito com as “regras sociais”.

Julia, a primeira entrevistada, é uma mulher ousada de personalidade forte e que parece ter consciência elevada de sua condição feminina. A personagem Coetzee aparece em sua vida como uma forma de vingar-se das traições de seu marido. Ela o descreve como um homem nada atraente: “Era como se tivesse sido borrifado da cabeça aos pés com um spray neutralizador, um spray assexuado”. A seu ver, ele mantinha uma postura de desânimo e fracasso, apesar de ser inteligente: “[...] então, se não fosse inteligente, não sobrava mais nada para ele ser [...]”.

Margot, a segunda entrevistada, é prima mais velha da personagem Coetzee. Uma mulher casada, recatada, dócil que assim como seu primo é contra a apartheid o que podemos evidenciar no trecho em que ela encontra-se com a enfermeira negra Aletta e o motorista da ambulância também negro. “Eu gostaria de oferecer a eles dois um café na lanchonete, gostaria de sentar com eles de um jeito amigo, normal, mas claro que não podia fazer isso sem provocar confusão.” Ela preocupa-se demasiadamente com a opinião dos outros e, por isso, pondera as palavras. Sente um misto de culpa e pena por seu primo ser solitário, amargo e incompreendido pelos demais familiares que o enxergam como um criminoso por ter sido deportado dos EUA. “Ele é metido, diz Carol. Se tem em alta conta. Não suporta se rebaixar a conversar com gente comum. [...], fica sentado num canto com um livro.” Seu primo, para ela, era um homem frágil, introspectivo, assexuado, solitário e presunçoso.

Para Adriana, Coetzee era um homem desprovido de virilidade, um celibataire: “Quer dizer não só um solteiro, mas também não adequado ao casamento, como um homem que passou a vida no sacerdócio e perdeu a virilidade, ficou inapto para as mulheres [...] Mas havia uma qualidade que ele não tinha e que uma mulher procura num homem, uma qualidade de força, de masculinidade.” Coetzee, segundo Adriana, era um homem louco, doentio e imaturo.

Sophie foi colega de Coetzee na Universidade da Cidade do Cabo. Aparentemente, ela é a única mulher com quem a personagem Coetzee se envolveu em um relacionamento amoroso real e que nutria por ele alguma admiração. Ele é descrito por ela como um homem frio, dono de um idealismo utópico. Para Sophie, seu relacionamento com Coetzee “foi essencialmente cômico. Cômico-sentimental.” Mas ele também teve uma relevância grande em sua vida, conforme identificamos no relato: “Porém com um outro elemento que eu não posso minimizar, ou seja, que ele me ajudou a escapar de um mau casamento e por isso sou grata até hoje.”

Martin foi o único homem entrevistado. Ele teria conhecido a personagem durante a entrevista de emprego para lecionar na Universidade da Cidade do Cabo. John teria perdido a vaga para Martin. Para o entrevistado, John não sabia “ler as intenções por trás de uma pergunta”, era “deficiente de habilidades pessoais”. Coetzee sentia-se como um estrangeiro dentro de sua terra de origem; pessoalmente, ele tratava os sentimentos como transitórios e não se comprometia emocionalmente. Como professor ele não merecia destaque. Segundo Martin, “John era um acadêmico perfeitamente adequado, mas não um professor notável. Talvez se ele tivesse ensinado sânscrito fosse diferente, sânscrito ou qualquer outra disciplina em que a convenção permita que você seja um pouco seco e reservado”.

Para o crítico Antonio Candido, existem duas verdades: “a verdade da existência” e “a verdade da ficção”. Na entrevista concedida por Margot, lê-se: Eles falam africânder entre si. O africânder dele é hesitante; ela desconfia que ele fala inglês melhor que africânder, embora ela raramente tenha necessidade de falar inglês, vivendo no campo, na platteland. Mas eles falam africânder um com o outro desde criança; ela não vai humilhá-lo se oferecendo para mudar. (p.101).

A biografia de Coetzee, criada por ele mesmo, em três volumes, parece ser uma resposta as perguntas sobre sua vida pessoal. Toda a obra é ficcional. No entanto, o autor entrelaça a ficção com elementos factuais históricos ao relatar fatos como: o atentado ocorrido em Francistown, na cidade de Botswana; a visita do poeta Breytenbach ao território africano e a situação dele com o governo local; a prisão de Nelson Mandela; a ditadura militar no Brasil, etc. Numa leitura superficial da obra, a mistura de registros históricos reais com as descrições das personagens entrevistadas pode nos induzir a acreditar que tudo seja real. Ao realizarmos uma leitura atenta somos capazes de perceber que o autor cria propositalmente essa ilusão como se evidencia na fala da personagem Sophie: “Ele acreditava que nossas histórias de vida são nossas para construir como quisermos, dentro ou mesmo contra os limites impostos pelo mundo real”.

A imagem da personagem Coetzee, criada pelo autor Coetzee, nos faz refletir sobre a verdade por trás da narrativa. Até que ponto se pode ler uma biografia, ou qualquer outro registro histórico, com a certeza de que seu conteúdo é totalmente “verídico”? O autor parece nos dizer que, independente de quem escreva a história, o resultado será sempre parcial e tendencioso. A verdade existe apenas dentro do fato, dentro da narrativa de Coetzee ela se transforma em verossimilhança, uma mímese da realidade.

Considerando a fala de Sophie, podemos destacar o trecho em que o autor apresenta um exemplo de verdade parcial: “Ele chamava isso de futuro brasileiro. Ele aprovava o Brasil e os brasileiros. Claro que nunca tinha estado no Brasil”. Durante a entrevista com a bailarina Adriana podemos identificar a inferência do autor ao falar dos Latino-americanos como um povo “gentil”, “amável” e “amigo”; local onde o negro pode se sentir em casa. No Brasil, apesar de não vivenciarmos a segregação racial da mesma forma que se evidencia no território africano, existe o racismo, existe a separação por raças dentro do território brasileiro. A visão parcial de uma realidade nos leva a acreditar em fatos duvidosos, reproduzindo pensamentos que nem sempre condizem com a realidade. Refletir sobre a verdade ficcional e a verdade factual é um exercício trabalhoso e necessário, essa parece ser a mensagem de sua obra: Leia tudo, mas não acredite em tudo.

Karine Miranda


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