O Mal-Estar na Civilização – Sigmund Freud e a Literatura na Era Digital

[...] a felicidade da vida é predominantemente buscada na fruição da beleza, onde quer que esta se apresente a nosso julgamento – a beleza das formas e dos gestos humanos, a dos objetos naturais e das paisagens e a das criações artísticas e mesmo científicas. [...] A beleza não conta com um emprego evidente; tampouco existe claramente qualquer necessidade cultural sua. Apesar disso, a civilização não pode dispensá-la (p.101-102).
À frente das satisfações obtidas através da fantasia ergue-se a fruição das obras de arte, fruição que, por intermédio do artista, é tornada acessível inclusive àqueles que não são criadores (p.99-100).

É sempre possível que, mesmo na mente, algo do que é antigo seja apagado ou absorvido – quer no curso normal das coisas, quer como exceção – a tal ponto que não possa ser restaurado nem revivescido por meio algum [...] (p.90).


Durante a leitura da obra “O mal-estar na civilização”, destaquei alguns trechos da narrativa freudiana que, direcionados ao campo literário, nos servirão de base à questão que traçaremos. Freud ao negar que exista qualquer necessidade cultural da beleza, e beleza aqui será sinônimo de criações artísticas – mais especificamente produções literárias -, pondera que a civilização não pode dispensá-la (p.102). Não é interesse, neste momento, nos determos aos atributos que ao homem é conferido através do cultivo da arte, nem à concretude cinzenta e insustentável em que viveríamos sem ela. Interessante é voltarmos nossas atenções para a literatura e a produção do livro que, em tempos tão complexos e práticos, ainda hoje tem seus representantes multiplicados.

Diante da produção literária da última década, matéria de minha investigação de mestrado, podemos observar uma fértil e curiosa proliferação de produtores literários. Contrários às constatações de que não existem mais leitores; de que os jovens têm dificuldades em escrever ou ler; de que a internet empobrece a escrita; de que o livro é produto pouco vendido - e está com os dias contados, uma vez que não terá espaço em uma cultura voltada à velocidade digital -, escritores vários, notoriamente jovens, surgem e movimentam a literatura e o fazer literário. Esses produtores de que falo, iniciam-se na arte cada vez mais jovens, ou seja, os novos escritores pertencem a mesma geração que traz à tona todas essas “ameaças” citadas, configurando um fenômeno, no mínimo, contraditório e curioso.

Esses novos escritores de que tratamos não só dão continuidade a arte de escrever como, tendo toda uma tecnologia digital disponível, tendo às redes da web de alcance infinitamente mais amplo, desejam e articulam para ver suas narrativas impressas no bom e velho livro. Participam de concursos literários em que os prêmios são edições impressas das obras vencedoras; desejam ter seus nomes vinculados a editoras de prestígio; e, quando não são acolhidos pelo mercado editorial, criam suas próprias editoras. Tais fatos nos torna possível a interpretação de que o livro ainda é o suporte que confere às produções literárias, o status de literatura, de produção artística, ou como diz Freud, de beleza.

Tomando emprestada a questão formulada por Hegel (1) e adaptando-a aos nossos propósitos: por que ainda cria o homem obras de arte? Poderíamos supor, para situar nosso questionamento nos conceitos freudianos, que a produção literária - considerando, repito, literatura como produção artística - está associado à busca da satisfação, ou seja, ao princípio do prazer que a tecnologia, a cultura digital, não pôde suprir. Segundo Freud, a vida tal qual a encontramos é árdua e difícil para nós e para suportá-la lançamos mão de medidas paliativas, como as satisfações substitutivas, nas quais se encontram os ‘prazeres’ proporcionados pela arte (p.93). Drummond (2) observou certa vez que, contraposta à realidade, a literatura pode ser metaforicamente compreendida como se tivesse duas portas: uma que fosse via de fuga da realidade, outra uma via de penetração mais profunda na própria realidade. Ainda que reconheça as satisfações obtidas através da fantasia e a fruição que se ergue no fazer literário (FREUD, p.100), nossa questão não pode ser avalizada, e encerrada, pelo crivo único da satisfação, uma vez que a literatura, como muito bem definiu Drumonnd, não situa-se exclusivamente na fuga substitutiva. Pode a literatura representar a penetração na própria realidade e aqui o argumento do princípio do prazer se desfaz.

Ainda nos resta, seguindo os recortes da obra de Freud em que nos fundamentamos, associar a persistência da arte, da literatura diante a cultura digital - representada pelas ações dos novos escritores sob os quais voltamos aqui nossos olhares – ao temor do aniquilamento ou, em outras palavras, do esquecimento. Na visão do psicanalista Freud, ainda que em outro contexto - o da memória primitiva -, nada do que uma vez se formou no mnêmico pode perecer, mas as portas da possibilidade contrária são abertas pelo próprio, ao afirmar que é sempre possível que algo seja apagado ou absorvido (p.87-90). Como não temos consciência de tal memória de que nos fala Freud, padecemos diante da possibilidade do esquecimento, do aniquilamento de nossa existência, da morte.

Trazemos a baila o autor Coetzee (3), que melhor pode significar o medo de que falamos, na perspectiva do escritor. Coetzee, em meio as suas ideias expostas na obra “Verão ”, nos revela que escrever é um gesto de recusa diante da época. Uma aposta na imortalidade. Mas, explica o autor, a imortalidade que busca através dos livros que escreve, não é no sentido de existir fora do tempo (p.68). Seguindo nossa linha de raciocínio, dentro do contexto em que situamos nossa discussão, em meio à velocidade e rapidez que a era digital nos impõe, vista a proliferação frenética de informações que nos chegam, podemos considerar que a nossa questão encontre um de seus pilares aqui, no medo do esquecimento.

As criações, as manifestações escritas têm, com a tecnologia da web, uma dinâmica esquizofrênica, que colocam os escritores em meio a uma dicotômica realidade. Ainda que a internet como suporte literário tenha uma capacidade de alcance e circulação mais ampla e acessível do que os livros, em meio ao fluxo caótico que se instaurou pela facilidade de acesso e exposição de informações e ideias, a possibilidade de cair no esquecimento, ou de tornar-se invisível no mundo virtual, duplicou. Assim podemos, com alguma pouca segurança, inferir que a preocupação dos novos escritores em ter suas narrativas impressas em livros se justifique. Além de assegurar a imortalidade que nos significou Coetzee, encontram nas obras impressas a certeza de que não serão invisibilizados pela tecnologia. Logo, o suporte de suas ideias continua sendo transferido do neural para o antigo e mais “eficiente” livro.

Certamente essa discussão que iniciamos aqui não se encontra encerrada, sequer bem delineada. Também é certo que as linhas deste trabalho não serão suficientes para esgotar as possibilidades explicativas da questão, mas cumpre este o papel assertivo de alertar para que a literatura contemporânea hoje vive um verdadeiro boom literário e observá-lo é atentar para as mudanças resultantes do surgimento de outras vozes e de novos sujeitos, ainda carentes de analise.
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[1] A indagação originalmente feita por Hegel, in “Estética: a idéia e o ideal”,  foi "Por que cria o homem obras de arte?”.  Ainda que Hegel conceba a arte como uma manifestação do espírito ou matéria ligada à intuição e ao elevado grau profético, considerações contrárias às concepções que embasam minha pesquisa de mestrado, cabe a sua formulação, ainda que adaptada ao contexto em que se situa a matéria.

[3] COETZEE, J.M.  Verão: Cenas da vida na província. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letra, 2010.



Comentários

  1. Gostei muito da sua análise!
    Escrever é mais difícil quando me deparo com o momento atual da nossa geração,mas eu gosto de mudanças e acredito numa literatura mais acessível.

    A Cara da Poesia

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  2. Pra você ver, mesmo com tanta tecnologia, ainda somos humanos, ou seja, ainda buscamos a imortalidade, e ainda buscamos o prazer.

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