A Literatura Como Precursora de Novos Modos de Ler e de Escrever

No texto Processos Midiáticos e Comunicação Literária, Olinto apresenta como tema central a discussão sobre a sobrevivência do livro impresso e encadernado em meio ao advento da mídia digital, e as “posições polares excludentes” ocupadas e defendidas por teóricos diante da nova era tecnológica (2002, p.55). Poderíamos entender, ainda, que a discussão levantada pela autora não se encerra na temática acima definida, pois também à noção de texto e ao leitor voltam-se as observações de Olinto. Ambos são analisados em tempos de prolíferos hipertextos, que com sua distinta construção não linear e organização sem inicio, meio ou fim conferem ao conceito de texto novas compreensões e aos leitores múltiplas experiências. Mas é a partir da alusão ao livro idealizado por Mallarmé, à “máquina poética” de Raymond Queneau e ao ensaio “A poética da obra aberta” de Umberto Eco (p.67), que o autor apresenta aquele que será o assunto de nosso maior interesse e ao qual nos deteremos – a literatura como precursora de “novos modos de escrever e de ler” (p.67).


A literatura sem modos fechados e definitivos de organização, não é propriamente uma inovação sobrevinda em consequência das novas tecnologias da informação. Já algumas obras literárias buscaram esta “libertação” das estruturas fixas e estanques, e para bem ilustrar tal colocação reavivamos a obra Avalovara, escrita em meio à ditadura militar brasileira (1973) pelo autor pernambucano Osman Lins. O romance de formação escrito por Lins surpreende pelo seu “caráter inovador” e pela sua complexidade estrutural que “nos remete ao que hoje denominamos hipertexto” (GOMES, 2010, p.83). Próprio do hipertexto, Avalovara desafia o leitor a desvendar em sua forma multilinear toda a intertextualidade que carrega em suas linhas: referentes históricos, arte pictória, obras, personagens e lugares literários, música, poesia, entre outros.

Avalovara foi “reconfigurado” em hipertexto eletrônico pelo projeto de pesquisa Uma rede no ar: os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins. A obra instigou os pesquisadores a “atualizar seu caráter hipertextual” tornando manifesta a opressão imposta pela ditadura militar e a “reflexão sobre seus efeitos nefastos” denunciadas na obra (GOMES, 2010, p.82). Porém, a intenção aqui é realizar uma análise e exposição do caráter hipertextual da obra, a partir de exemplificações e desvelamento de algumas de suas alusões que vão para além do livro em si e além das alusões sócio-históricas que faz. Pretendemos observar o hipertexto em Avalovara que nos remetem a “textos” outros, confirmando seu caráter multilinear e a ideia de literatura como precursora de características próprias da atual cultura da internet.



A LITERATURA COMO PRECURSORA DE “NOVOS MODOS DE ESCREVER E DE LER"

Avalovara configura um exemplo literário a mais dentre os citados por Olinto como “precursores de novos modos de escrever e ler” (p.67). Stéphane Mallarmé, que inaugura o texto de Olinto, idealizou um projeto de livro, ainda que esse não tenha passado da fase conceitual, que serviria como “modelo de uma arquitetura textual cósmica” (2002, p.54). Le livre, como chamou Mallarmé o livro idealizado, não teria início e fim, configurando um projeto de livro infinito e coletivo que somente tornou-se concreto a partir da publicação de documentações, ensaios e anotações de Mallarmé, reunidas e publicadas em 1897, com o nome de Divagations. Privilegiava, Le livre, o “estatuto de virtualidade”, “ensaiando o esmaecimento da voz autoral” e principiando uma reflexão, hoje bastante discutida, sobre a “instância do leitor, que perde a sua função tradicional de intérprete” (p.55).

O livro idealizado, sem início e fim, em construção perpétua, único e multivocal, impessoal e vivo, soma de todos os livros, em última análise dispensa a assinatura do autor. Sem impressão digital e de dinâmica autopoiética, construindo, ao contrário, o seu próprio autor, esta obra só ganhava estatuto de realidade a partir de sua potencialidade projetada. (OLINTO, 2002, p.54)


Raymond Queneau, em 1984, retoma o projeto idealizado por Mallarmé. Queneau, explica Olinto, propõe a “transformação do ato poético em mecanismo seletivo” que filtra e seleciona fragmentos do contexto original, reinserindo-os em nova configuração, na qual os versos poéticos poderiam ser combinados e recombinados pelo leitor que, autônomo, tem a oportunidade de escolher a construção e as “rotas” de leitura que pretende empreender. Queneau, no manual para usuários, explica:

Esta pequena obra [...] permite a qualquer um criar, se quiser, cem bilhões de sonetos [...]. cada verso, em número de 10, pode ser articulado com outros 10 versos distintos: haverá portanto 100 combinação distintas dos dois versos iniciais; se você quiser acrescentar um terceiro haverá 100, e para os primeiros sonetos completos de 14 versos cada um, teremos, assim, o resultado antes mencionado [...]. ou seja, cem bilhões de sonetos. (QUENEAU, apud OLINTO, 2002, p. 67).

Observamos que nos exemplos trazidos por Olinto, Avalovara em muito se identifica. Comparada ao ideal de Mallarmé e à “máquina poética” de Queneau, Avalovara aparece com o seu modelo de arquitetura textual inovador. A partir do empreendimento da leitura da obra de Lins a reflexão que surte da ideia de Mallarmé a cerca da “instância do leitor, que perde a sua função tradicional de intérprete”, aparece nitidamente. O leitor de Avalovara não é um leitor comum, estagnado a interpretação de um texto literal. Ao contrário de uma sequência linear tradicional, a arquitetura estrutural do romance, na versão impressa, é composta de temas distribuídos, aparentemente de forma desordenada, no decorrer do livro. O leitor para compreender o enredo de cada tema tem que se desprender do hábito linear de leitura de narrativas com início meio e fim.

No tema S, Osman Lins apresenta, como fez Queneau, uma espécie de manual ao usuário. O autor ao tempo em que explica a estrutura do livro que o leitor tem nas mãos - dando dicas da complexidade da obra -, em metalinguagem aborda seus anseios de escritor propenso a limites estruturais pré-estabelecidos aos quais está (irremediavelmente?) destinado: “Como, então fazer repousar a arquitetura de uma narrativa, objeto propenso ao concreto, sobre uma entidade ilimitada e que nossos sentidos hostis ao abstrato, repudiam?” (LINS, s4, p.1)

Sendo a espiral infinita, e limitada às criações humanas, o romance inspirado nessa figura geométrica aberta há que socorrer-se de outra, fechada e evocadora, se possível, das janelas, das salas e das folhas de papel, espaços com limites precisos, nos quais transita o mundo exterior ou dos quais o espreitamos. A escolha recai sobre o quadrado: ele será o recinto, o âmbito do romance, de que a espiral é força motriz. [...] regerá com seu vertiginoso giro a sucessão dos temas constantes do romance. Pois o quadrado será dividido em outros tantos, idealmente iguais entre si. E a passagem da espiral, sucessivamente, sobre cada um, determinará o retorno cíclico dos temas neles esparsos (LINS, s4, p. 1)


Osman Lins, assim como Mallarmé e Quenua entendia a literatura como uma construção “plurívoca, aberta”, capaz de se oferecer ao leitor, como expõe Olinto “como feixe de possibilidades fruitivas, transformando-o em centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis” (2002, p.67), “sem ser determinado por uma necessidade que lhe prescreve os modos definitivos de organização da obra fruída” (ECO, apud OLINTO, 2002, p.67).

O projeto de pesquisa que atualizou a obra Avalovara, Uma rede no ar: os fios invisíveis da opressão em Avalovara, de Osman Lins, descontruiu esta arquitetura projetada por Lins, mas intencionou facilitar e “aproximar o leitor contemporâneo de textos complexos”, a partir da reunião dos fragmentos dispersos no romance. (2010, p.84)

As possibilidades criadas pelo hipertexto de navegar por temas, rotas, estratégias, reunindo os fragmentos dispersos no romance, tornaram visível a conjugação de uma técnica compositiva que pré-configura os movimentos de um leitor da cultura digital com uma temática própria do gênero romanesco [...] (GOMES, 2010, p.82)

Olindo trás, por fim, um último exemplo da ideias de obras literárias como precursoras de formas outras de ler e escrever, mas agora, na figura de Umberto Eco, refletindo sobre os estudos literários que compreendem a literatura e os textos literários como um fim em si mesmo. No ensaio “A poética da obra aberta”, Eco propõe um modelo de estudos literários “não fundados na forma verbal objetiva e autônoma da obra, mas sobre sua relação fruitiva entre ela e seus possíveis receptores” (2002, p.67).

A complexidade do romance Avalovara está, ainda, além de sua estrutura organizacional. O texto, a linguagem, as frases fragmentadas, causam estranhamento ao leitor que se depara com fragmentos, à primeira leitura, desconexos. As alusões intertextuais e hipertextuais – na concepção de Barthes: “Todo o texto é um hipertexto. Outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis”. (buscar referência) - podem tanto instigar o leitor mais ávido a desvendar os mistérios que esconde, como levá-lo a desistir da leitura. A riqueza intertextual criada por Lins é digna de investigação e, ainda que cada leitor deva empreender suas leituras e buscas, para tal voltamos nossas atenções agora.


AVALOVARA


Várias poderiam ser as citações para ilustrar a riqueza intertextual existente em Avalovara. Além do contexto histórico que se “esconde” nas entrelinhas da narrativa, podemos observar a presença de alusões à música, obras literárias, cidades, artes pictórias, entre outros. A partir de alguns trechos ilustraremos algumas dessas alusões de que falamos:

A literatura:

[1] Algo assim impulsiona o capitão de Malville . Entregar-se-ia ele a uma busca tão obstinada se a baleia que o faz revolver sem descanso o Oceano fosse de uma cor azulada como os demais cetáceos – e não branca? (LINS, A11, p.7).

[2] Chama-me, ninguém sabe por que, talvez por causa da barba cor de ferrugem, Liév Nikoláievitch Míchkin , fitando-me com seus olhos ligeiramente estrábicos. Quando está melhor, como neste fim de tarde, seu assunto são os grandes prosadores russos. (p.24)

Música:


[3] Eis aiona, eis aiona [...] . (LINS, O7, p.8)

[4] A música de Orff continua: coro dos jovens, das jovens, coro dos anciãos. Proclamam os velhos a transitoriedade das paixões, immensa stultitia mas os jovens contestam ferventes de esperança. (LINS, O8, p.8


Pintura:

Não acha os híbridos atraentes? Examino, no ônibus, a reprodução de um baixo-relevo existente no Museu do Louvre, representando o homem como um frágil barco que voga sobre o mar do mundo. O esqueleto alado, na popa, simboliza a matéria; o velho no centro, o espírito imortal; a mulher à proa, sustendo nos braços erguidos uma vela enfunada, é a força vital; guardia das paixões cegas e dos impulsos irrefletidos faz avançar o barco e os demais ocupantes. (LINS, T13, p.17)


 pombos, gaivotas, flautas de metal, reflexos nos automóveis, nas bicicletas, nas águas; cortinas rendadas, sol nas vidraças, nuvens algodoadas, tudo forma uma só coisa, uma só palavra incompreensível e luminosa; a pintura de Vincent evolui das trevas, da fuligem, para ofuscantes trigais e girassóis; a luz perpassa como uma melodia através das mãos e das faces, nos quadros desses mestres holandeses, reinando com tamanha eloqüência sobre a escuridão dos trajes e dos interiores que se tem a impressão de ouvir, mesmo em artistas menores, a mesma frase: "Pouco a pouco avançamos para a vidência". (LINS, A11)

Linguagem fragmentada:


Transitamos entre nós, vamos de mim a mim eu eu nós eu eu de mim a mim, laço e oito, boca e boca, transitamos e somos, a esfera circunscreve-nos e nós próprios uma esfera, boca e boca (de quem?) coxas braços joelhos bunda orelhas (de quem?) membro garganta bainhas rorantes o prazer formando-se os culhões acesos cabeleiras ais. (LINS, N2, p.2)




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[1] Alusão ao romance Moby Dick do autor americano Herman Melville. O livro foi revolucionário para a época, com descrições intricadas e imaginativas das aventuras do narrador. Em um texto que ficou famoso, Jorge Luis Borges definiu Moby Dick como um “romance infinito” página a página, se amplia até superar o tamanho do cosmos”. Quem já enfrentou as quase 600 páginas da extravagante caça à baleia branca empreendida pelo obsessivo capitão Ahab a bordo do barco Pequod, há de concordar com o escritor argentino. Mas não é apenas por conta da extensão física do épico do americano Herman Melville que se pode vislumbrar o infinito. A vastidão é encontrada na quantidade de interpretações que o romance foi capaz de engendrar, tão ou mais extravagantes que a própria obra . E a história acidentada de Moby Dick, de sua inspiração à futura popularidade que conquistou no século 20, parece não pertencer ao tempo e à lógica regulares dos mortais.

[2] Trata-se do príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin, da obra “O Idiota”, do escritor russo Dostoievski

[4] Carl Orff (1895-1982). No dia 10 de Julho de 1895 em Munique, Alemanha, nascia Carl Orff. Estudou na Academia de Música de Munique e com o compositor alemão Heinrich Kaminski e mais tarde foi regenteem Munique, Mannheim, e em Darmstadt. Seu Schulwerk, um manual descrevendo seu sistema de educação musical baseado na prática do canto e da percussão, foi publicado em 1930 e ainda hoje é ministrado em jardins de infância e escolas primárias do mundo inteiro. Escreveu peças de marionetas com música em sua adolescência, o que já era indício de sua paixão pela ópera e pela voz humana, que serviu como ponto de apoio em todas as suas composições. Estas apresentavam estilo marcante, associando melodias infantis e ricas em harmonizações com ritmos vigorosos e pulsantes, tendo a extravagância de uma partitura cinematográfica. Publicou sua primeira composição aos 16 anos. Seu alistamento no exército (1917) contribuiu para mudar seu estilo musical. Montou algumas óperas do século 17 e, em 1919, retirou-se do cenário teatral para ser apenas compositor. Foi professor de Karl Marx (o compositor, não o economista). Em 1924, fundou em Munique, em parceria com German Gymnast Dorothee Günther, a Günther School, escola de ginástica, dança e música. Compôs as cantatas dramáticas Catulli Carmina I (1930) e Catulli Carmina II (1931) com textos em latim e acompanhamento de coro. Em 1935-1936, compôs seu secular oratório Carmina Burana , baseado em manuscritos de poemas medievais. Esta obra levou-o a escrever outras, inspiradas no teatro grego e em misteriosas peças medievais, como as notáveis cantatas cénicas Catulli Carmina (1943) e Triunfo de Afrodite (1953), as óperas-contos de fadas ou fantástico-populares, A Lua (1939), A Astuta (1943) e as óperas trágicas Antígona(1949), Édipo Rei (1960), Prometeus (1966) e Comédia para o fim dos Tempos. Suas obras têm em comum todos os ritmos vivos, a orquestração colorida e o desejo de agradar ao público. Seu sucesso na Alemanha, fez dele sucessor de Richard Strauss como uma espécie de clássico da ópera bávara. Morreu no dia 29 de março de 1982 em Munique, ficando como um dos esteios do repertório operístico alemão. (fonte: portal do movimento)
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Referências
LINS, Osman. Avalovara. Disponível em: http://www.um.pro.br/avalovara/. Acesso em: 05 abr 2011


OLINTO, Heidrun Krieger. Processos midiáticos e comunicação literária. In: OLINTO, Heidrun Krieger e SCHOLLMMER, Karl Erik (org). Literatura e mídia. São Paulo: Loyola, 2003.

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