Osman Lins: A Rainha dos Cárceres da Grécia


"Escrever, para mim, é um meio, o único de que disponho, de abrir uma clareira nas trevas que me cercam. [...] Sem experiência, decerto, não hã conhecimento. Contudo, pelo menos no meu caso, mesmo o conhecimento obtido pela experiência é desordenado e informe. Só o ato de escrever me permite sua ordenação; portanto, escrever se me apresenta como a experiência máxima, a experiência das experiências. Minha salvação, meu esquadro, meu equilíbrio." (1)





BIOGRAFIA
Osman Lins nasceu em Vitória do Santo Antão, filho de um alfaiate e de uma dona de casa, que morreu logo depois de seu nascimento. A ausência da mãe foi compensada por um círculo familiar de grande afetividade, liderado por sua avó paterna. Aos 16 anos de idade mudou-se para o Recife, onde ingressou no curso de finanças. Nesta época começou a trabalhar no Banco do Brasil. Posteriormente estudou dramaturgia na Universidade do Recife.

Em fins dos anos 1940, Osman Lins casou-se com Maria do Carmo, com quem teria três filhas. Em 1950 ganhou um concurso literário com o conto "O Eco", mas sua estréia na ficção se deu com a publicação de seu primeiro romance, "O Visitante", em 1955. Dois anos depois publicou "Os Gestos" e em seguida "O Fiel e a Pedra".

Sua primeira peça teatral a ser encenada foi "Lisbela e o prisioneiro", adaptada com sucesso para o cinema em 2003.

No início dos anos 1960, Osman Lins viveu na Europa, como bolsista da Aliança Francesa. De volta ao Brasil, transferiu-se para São Paulo. Em 1964, já separado de sua primeira mulher, casou-se com a escritora Julieta de Godoy Ladeira. Publicou, em 1966, "Nove, Novena" (Leia um conto aqui), "Um Mundo Estagnado" (ensaios) e mais uma peça de teatro, "Guerra do Cansa-Cavalo".

Em 1970 tornou-se professor universitário, ensinando literatura brasileira. Obteve também o grau de doutor em Letras, com uma tese sobre o escritor Lima Barreto. Em 1973 Lins publicou o enigmático romance "Avalovara", considerado uma de suas principais obras e traduzido para diversas línguas. Poucos anos depois, pediu exoneração da Universidade, desencantado com a qualidade do ensino brasileiro.

É também autor de "Guerras sem Testemunhas", livro-tese, onde discorre sobre as atividades e os problemas enfrentados pelo escritor.

Seu último romance foi "A Rainha dos Cárceres da Grécia", publicado em 1976. Osman Lins colaborou com diversos órgãos de imprensa e escreveu roteiros para televisão. Autor de uma vasta obra reconhecida pela crítica, recebeu diversos prêmios, entre eles o prêmio Monteiro Lobato e o prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras.   (Fonte: Biografia UOL Educação





A RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA

Osman Lins segue a trilha de inovações formais de Nove, novena (1966) e Avalovara (1973) nesta que foi a última obra de ficção do autor. Nele, "um obscuro professor secundário" de biologia tenta, dia após dia, interpretar o único romance escrito por sua falecida amante, Julia Marquezim Enone, chamado A Rainha dos Cárceres da Grécia. Durante a leitura, a voz do professor se mistura com a de sua musa, e ambas se dissolvem na trajetória da personagem-narradora criada por Julia, a delirante Maria de França, que empreende uma jornada kafkiana pelos labirintos do INPS em busca da aprovação de sua aposentadoria por invalidez.

Ao desvendar as desventuras e delírios de Maria de França, o professor contamina a narrativa com suas lembranças. A leitura do livro dentro do livro torna-se uma forma de o professor entender as suas angústias e as de sua amada. Através da memória, as histórias e seus relatos transcendem o tempo, num grande exercício de experimentação da escrita. (Fonte: Companhia das Letras)




RESENHA: A RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA

Cristovão Tezza

Numa entrevista de 1976 (Revista "Escrita", nº 13), o escritor Osman Lins (1924-1978), autor do romance "Avalovara" (Companhia das Letras), publicado em 1973 com grande repercussão, faz três observações que sintetizam parte do imaginário literário daquela década no Brasil: o mercado editorial brasileiro estaria perniciosamente dominado por uma "literatura epidérmica"; a arte contemporânea se equivocava ao "voltar as costas para o cosmos"; e, referindo-se à prosa, diz que o romancista não quer mais iludir o leitor, não propõe um "simulacro da vida", mas "personagens feitos com palavras".

Olhando retrospectivamente, o mergulho no tempo revela suas fontes: a ascensão na crítica universitária do estruturalismo francês, com status de ciência da literatura e retomando os dogmas formalistas da revolução teórica dos anos 1920 ("arte é procedimento"), aqui relançados, anos antes, pelo movimento concretista; o prestígio da escola de Frankfurt, que alerta sobre os perigos da "reprodutibilidade da obra de arte", transformada em mercadoria, para consumo, digamos, epidérmico; e finalmente, em outra direção, os ventos do espiritualismo oriental - sob o aroma ainda inocente da cannabis, tribos de bichos-grilos anunciavam um novo tempo de paz e amor. Enquanto isso, a ditadura corria solta.

Ter esse quadro em mente talvez seja um bom método para reler "A Rainha dos Cárceres da Grécia", do mesmo Osman Lins, agora reeditada. Em forma de diário, um professor propõe-se a comentar o romance inédito, de mesmo título, escrito pela sua ex-mulher, Julia Marquezim Enone. O livro de Julia, por sua vez, conta a história da pobre Maria da França, que tenta, e não consegue, se aposentar pelo INPS.

Sob este álibi, a narração faz uma multifacetada colagem de citações, num tom ornamental de ensaio literário. Assim, a obra absorve quase sem refração recortes reais de notícias de jornal, inesgotáveis citações de obras científicas e literárias, com a devida informação bibliográfica em notas de rodapé, e fragmentos teóricos, entremeados aqui e ali por trechos da suposta obra de Julia. Ao final, uma espécie de delírio sintático-semântico-lexical acaba por corroer qualquer tentativa de fazer do texto um "simulacro da vida" em que o olhar do leitor pudesse concentrar os sentidos.

A destruição como projeto

A essa altura, é o caso de repensar menos a obra e mais o seu pressuposto, aquilo que a destrói como ficção (de acordo com o projeto do autor). O primeiro aspecto a considerar é a ilusão, aliás poderosa, de que existe linguagem sem sujeito. Em vários momentos, o texto dá aulas mais ou menos lapidares ("Declina o romance atual do que foi ponto de honra no passado e respondeu por tantas dissimulações mais ou menos ingênuas"), que marcam o desejo de não criar simulação: "Quero um ensaio", diz o narrador, "que estabeleça com o leitor -ou cúmplice- um convívio mais leal".

Por coerência, a linguagem técnica é dominante. Para "não enganar o leitor", o texto não nos dá distância, e o contraponto paródico, potencialmente explosivo na literatura, jamais se realiza de fato, porque o narrador leva-se a sério o tempo todo -no tom solene do seu discurso não se vislumbra a menor ironia.

O problema é que, como ficção histórico-ensaística (uma linha presente na literatura moderna), "A Rainha dos Cárceres da Grécia" resulta apenas num agrupamento de ilustrações fragmentárias que não se concentram em nada -falta-lhe a visão de mundo que lhe daria sentido, o que exige mais do que apenas um "personagem de palavras". É curioso que o império da citação, como marca de estilo de época, continua vivo, sempre sob o imaginário metafísico da "morte do autor" e da "impossibilidade de dizer". O que em Jorge Luis Borges era o charme discreto de um clássico contador de histórias se transformou, na virada do século, em um ideário estético completo. Talvez a questão central que Osman Lins antecipa sem querer seja a crise de uma linguagem que se recusa a assumir a responsabilidade plena do que diz.

O "não-dizer" de Osman Lins poderia ser compreendido como uma referência à ditadura militar então vigente, mas isso seria forçar demais a interpretação do texto. Na verdade é a outra preocupação do autor -o "cosmos" como valor- que nos dá a chave de um discurso místico e englobante ainda latente nos anos 70 e que hoje parece explodir em toda parte. Nesse olhar, o fracasso da literatura seria, por paralelismo, uma das faces do fracasso da razão para dar conta dos fatos do mundo.

Curiosamente, o formalismo científico que inventou a morte do narrador se encontra aqui com o irracionalismo que faz da linguagem um valor autônomo, religioso ou não, e não uma experiência laica enraizada na história e realizada na palavra. Em literatura, é sempre bom que a mão esquerda, a da ficção, não queira imitar muito o que faz a direita, a da teoria.

A obra de Osman Lins, ao assimilar tão completamente as tentações teóricas do instante presente, se transformou nessa pérola única, sem antecedentes nem descendência, preciosa e datada como um baú do tempo. (fonte: Site Cristovão Tezza)


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(1) Entrevista concedida a Esdras do Nascimento, in Suplemento Literário de "O Estado de S. Paulo", 24/maio/1969.



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