MARCELINO FREIRE

Estudando na faculdade alguns autores contemporâneos, foi que conheci esse magnífico escritor. Os textos de Marcelino Freire chamaram-me a atenção de forma tal, que precisei compartilhar essa "descoberta" com vocês. Para apresentá-lo,  transcrevo essa pequena biografia abaixo, escrita pelo próprio autor, publicada em seu blog: eraOdito.

MARCELINO FREIRE
Eu nasci no ano de 1967 em uma cidade chamada Sertânia, alto sertão de Pernambuco. Vivo em São Paulo, vindo do Recife, desde 1991. Escrevi, entre outros, "Angu de Sangue" (Contos, 2000, com fotos de Jobalo), "eraOdito" (Aforismos, 1998 - 2002) e "BaléRalé" (Contos, 2003), esses publicados pela Ateliê Editorial, São Paulo. Em 2005, lancei pela editora Record o livro "Contos Negreiros", com o qual ganhei o Prêmio Jabuti 2006. Em agosto de 2008, lancei, também pela Record, o volume de contos "RASIF - Mar que Arrebenta", com gravuras de Manu Maltez. Sou editor, tendo idealizado e lançado, em 2002, a "Coleção 5 Minutinhos" (eraOdito editOra), com livros inéditos, distribuídos gratuitamente, de nomes como Moacyr Scliar, Glauco Mattoso, Valêncio Xavier e Manoel de Barros. Em 2003, lancei a segunda versão da Coleção, desta vez destinada às crianças e reunindo autores como Luis Fernando Verissimo, Ignácio de Loyola Brandão, Haroldo de Campos e Tatiana Belinky. Sou editor, ao lado de Nelson de Oliveira, da revista de prosa "PS:SP", lançada, em número único, no ano de 2003. Participei das antologias "Geração 90 - Manuscritos de Computador" (2001) e "Os Transgressores" (2003), organizadas por Nelson para a Boitempo Editorial, e de algumas antologias internacionais, como a "Putas", lançada em Portugal (Quasi Edições, 2002) e "Terriblemente Felices", lançada na Argentina (Emece, 2007). Alguns de meus contos foram adaptados para teatro (pelo Coletivo Angu de Teatro, do Recife), TV (dentro do especial "Contos da Meia-Noite", da TV Cultura) e para o cinema (curtas-metragens dirigidos por cineastas como Tuca Siqueira e Iberê Carvalho). Alguns, idem, foram publicados em revistas e jornais no México, França, Estados Unidos e Itália. Em 2004, idealizei e organizei a antologia "Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século" (Ateliê Editorial e eraOdito editOra), reunindo 100 autores, como Dalton Trevisan, Millôr Fernandes, Marçal Aquino, Raimundo Carrero, João Gilberto Noll, em microcontos inéditos de até 50 letras. Ainda em 2004, idealizei e organizei para a editora paulistana Alaúde a "Série Paralelepípedos", em que autores de cada uma das 27 capitais brasileiras apresentam, para o público infantil e adolescente, a cidade em que nasceram ou onde vivem. Sou criador e curador de vários eventos literários. Em 2006, por exemplo, idealizei a Balada Literária, que reúne dezenas de escritores nacionais e internacionais pelo bairro paulistano da Vila Madalena. Mantenho este blogue eraOdito desde 2002. Recentemente, ele foi apontado, em pesquisa feita pela revista Bula, como um dos vintes blogues mais influentes da rede.


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Totonha
Marcelino Freire

Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso.

Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar bonito. De salvar vida de pobre. O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba?

O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o vale-lingüiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, ta me entendendo? Demente como um mosquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que eu. A química.

Tem coisa mais bonita? A geografia do rio mesmo seco, mesmo esculhambado? O risco da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Número?

Só para o prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço mais esforço que o meu esforço? Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o sol. Tem melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem?

Morrer, já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não uma doença. Tenha santa paciência!

Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só pra mocinha aí ficar contente? Dona professora, que valia tem o meu nome numa folha de papel, me diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do nome não conta?

No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa.

Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?

Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa saber o que assinou. Eu é que não vou baixar minha cabeça para escrever.

Ah, não vou.
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In Contos Negreiros, pp79-81.
Record, 2005


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