OSMA LINS - SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS

Osma Lins - Biografia   (site oficial)

Nascido em Vitória de Santo Antão, PE, em 5 de julho de 1924. Falesceu em São Paulo, dia 8 de julho de 1978. Osman Lins nasceu em Vitória do Santo Antão, filho de um alfaiate e de uma dona de casa, que morreu logo depois de seu nascimento. A ausência da mãe foi compensada por um círculo familiar de grande afetividade, liderado por sua avó paterna. Aos 16 anos de idade mudou-se para o Recife, onde ingressou no curso de finanças. Nesta época começou a trabalhar no Banco do Brasil. Posteriormente estudou dramaturgia na Universidade do Recife.

Em fins dos anos 1940, Osman Lins casou-se com Maria do Carmo, com quem teria três filhas. Em 1950 ganhou um concurso literário com o conto "O Eco", mas sua estréia na ficção se deu com a publicação de seu primeiro romance, "O Visitante", em 1955. Dois anos depois publicou "Os Gestos" e em seguida "O Fiel e a Pedra". Sua primeira peça teatral a ser encenada foi "Lisbela e o prisioneiro", adaptada com sucesso para o cinema em 2003.

No início dos anos 1960, Osman Lins viveu na Europa, como bolsista da Aliança Francesa. De volta ao Brasil, transferiu-se para São Paulo. Em 1964, já separado de sua primeira mulher, casou-se com a escritora Julieta de Godoy Ladeira. Publicou, em 1966, "Nove, Novena" (contos), "Um Mundo Estagnado" (ensaios) e mais uma peça de teatro, "Guerra do Cansa-Cavalo".

Em 1970 tornou-se professor universitário, ensinando literatura brasileira. Obteve também o grau de doutor em Letras, com uma tese sobre o escritor Lima Barreto. Em 1973 Lins publicou o enigmático romance "Avalovara", considerado uma de suas principais obras e traduzido para diversas línguas. Poucos anos depois, pediu exoneração da Universidade, desencantado com a qualidade do ensino brasileiro. É também autor de "Guerras sem Testemunhas", livro-tese, onde discorre sobre as atividades e os problemas enfrentados pelo escritor.

Seu último romance foi "A Rainha dos Cárceres da Grécia", publicado em 1976. Osman Lins colaborou com diversos órgãos de imprensa e escreveu roteiros para televisão. Autor de uma vasta obra reconhecida pela crítica, recebeu diversos prêmios, entre eles o prêmio Monteiro Lobato e o prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras.


Principais Obras

Lisbela e o Prisioneiro (teatro), 1964, reed.1994, Scipione, São Paulo;

Nove, Novena (narrativa), 1996, reed. 1994, Companhia das Letras, São Paulo;

Avalovara (romance), 1973, reed. 1995, Companhia das Letras, São Paulo;

Guerra sem Testemunhas (ensaio), 1969, reed. 1974, Ática, São Paulo;

Santa, Automóvel e Soldado (teatro), 1975, Duas Cidades, São Paulo;

Lima Barreto e o Ensaio Romanesco (ensaio) 1976, Ática, São Paulo;

A Rainha dos Cárceres da Grécia (romance), 1976, melhoramentos, São Paulo;

Casos Especiais de Osman Lins (teleteatro), 1978, Summus, São Paulo;

Evangelho na Taba (ensaio), 1979, Summus, São Paulo;

Retábulo de Santa Joana Carolina (teatro), 1991, Giordano, São Paulo.


Avalovara

Longamente congeminado, meticulosamente composto, resultava à risca, como um alquimista em seu laboratório secreto. Aqui, o requinte formal, e com ele a matéria romanesca, aprimora-se, supera-se. Partindo de um velho palíndromo - SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS, que o narrador traduz por “O lavrador sustém cuidadosamente a charrua nos sulcos” ou “O Lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita”, assim insinuando dois dos sentidos simbólicos da figura, - Osman escreve um estranho e belo romance de amor, dos mais belos quantos já apareceram na Língua Portuguesa. Três mulheres, identificadas com cidades, cruzam a vida de Abel, o herói (ou o anti-herói?). Um exótico pássaro feito de pássaros - o que dá título à narrativa -, um relógio, um tapete de míticas imagens presenciam os encontros amorosos, inscritos no quadrado palindrômico atravessado por uma espiral interminável, símbolos do Homem e da Mulher. Ou do Tempo e do Espaço, inseridos numa figura geométrica hieroglífica, de esotérica significação. Sob as vistas do nouveau roman, mas fugindo de suas mortais fragilidades, provenientes do radicalismo de sua proposta fundamental, e repudiando o estereótipo folclórico que marcava a ficção brasileira, Osman concebe um romance ecumênico, universal; as cidades onde contracenam os amantes e por meio das quais as heroínas se deixam reconhecer, podem ser quaisquer, assim como as personagens que representam. O lugar e cronologia do enredo desobedecem à convenção: tudo se passa numa esfera e num tempo míticos, da mesma forma que pertencem ao mundo dos mitos o pássaro imaginário que nomeia a história, o relógio a pingar horas vagas, o tapete e tudo o mais. História de um mito, se a redundância é permitida; ou o romance como narração de um mito. Ou o Amor como Mito.

Avalovara pretende reproduzir, na estrutura em palíndromo, configurado num quadrado e numa espiral, a ordem cósmica. É sabido que esta se rege pela entropia, de onde o (aparente) caráter multifacetado, anárquico, do romance, tendo em vista detectar as n dimensões temporais e espaciais. É um romance ucrônico, ubíquo, de utópicas cintilações. De geométrica ideação, traçado milímetro a milímetro, ancora-se na idéia do romance como construção mental, domesticada que é a fogosa fantasia pela rédeas do pensamento. Meta-romance, não sói porque o narrador porfia em desvendar-nos (?) o sentido do palíndromo e os passos de sua laboriosa fabulação, mas ainda por pensar o romance como arcabouço no qual a multifome realidade se reflete e por meio da qual o autor e o leitor fruem a sensação de abranger a totalidade do mundo num só painel fabultivo.
                              (adapt. De Massaud Moisés, Hist. Da Lit. Brás.: O  Modernismo, ed. Cultrix, 1989, p.510-511)

O que desde logo prende em Avalovara é a poderosa coexistência das deliberação e da fantasia, do calculado e do imprevisto, tanto no plano quanto na execução de cada parte, Falando do relógio de Julius Heckertorn (uma das linhas da narrativa), o Autor diz que obedecia a “um esquema rigoroso”. E “sobre este rigor assenta a idéia de uma ordem do mundo”. Mas “como introduzir, então, na obra, o princípio de imprevisto e aleatório, inerente à vida?” A execução do livro é a resposta, fascinante para o leitor, à medida que este vai experimentando a precisão geométrica do arcabouço, a minúcia da descrição e a poesia livre que rompe a cada instante.

SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS é uma frase inventada por um escravo frígio de Pompéia, feita de cinco palavras, cada um com cinco letras, que se pode ler igualmente nos dois sentidos, e em cuja composição entram apenas oito letras, que, distribuídas pelos quadrados menores, constituem as linhas narrativas. Nos vinte e cinco quadrados formam o quadrado grande, onde se contém a espiral, as palavras se sobrepõem horizontalmente, mas também se estendem em colunas verticais, pois a frase pod ser lida indiferentemente da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, de cima para baixo, de baixo para cima, em diverso rumos.

Assim, na narrativa, o amor é visto do homem para a mulher, da mulher para o homem, do presente para o passado, do passado para o presente, daqui para ali, numa reversibilidade vertiginosa que traz à baila a evocação da herma de Jano e chega a uma mulher que é também homem, para um homem que podeveria eventualmente ser também mulher.

As reversibilidades prosseguem ainda noutro plano, quando o Narrador se transforma periodicamente em Autor e a narrativa quebra a imagem do real, para apresentá-lo como fantasia composta. Nesta romance, uma das linhas é precisamente a da consciência crítica entrando a cada instante pela série ficcional, denunciando o seu caráter fictício de empresa deliberada, igualmente reversível entre a representação do real e o caráter ilusionista da representação. Daí um livro que não tem medo de se apresentar como livro, como maquinismo montado, como não-realidade - mas do qual jorram o fascínio de uma vida que palpita, o traçado do mundo exterior e a surda potência das emoções.
                                             (Adapt. de “A Espiral e o Quadrado” apresentação de Avalovara, Cia. Da Letras, 1995)


Significado das Letras do Palíndromo:
R: [ ] e Abel: encontros, percursos e revelações
S: A espiral e o quadrado
O: História de [ ], nascida e nascida.
A: Anneliese Roos e as cidades
T: Cecília entre os leões.
P: O relógio de Julius Heckertorn.
E: [ ] e Abel: ante o Paraíso
N: [ ] e Abel: o Paraíso.


Trecho do estudo: A Caçada ao Tempo Perdido
 Por Martim Vasques da Cunha

Mas, afinal de contas, do que se trata "Avalovara"? Fazer uma sinopse normal é quase impossível: Seria a história de Abel, aprendiz de escritor, que busca uma Cidade misteriosa que, na verdade, não existe em lugar nenhum? Seria a história de Abel com Cecília nos tempos de um Recife que existe somente na memória? Ou a história de Abel com Anielise Roos, uma mulher européia que contém cidades em seu corpo? Ou a história de Abel com uma mulher misteriosa, que não possui nome e é designada por um símbolo alquímico - o de um círculo com um ponto no centro e duas hastes apontando para cima - e que contém dois seres dentro de seu corpo composto de palavras encarnadas? Mas também pode ser a história da criação do maior palíndromo já inventado, a frase SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS, que coordena os movimentos dos personagens de "Avalovara" numa simetria implacável, dentro dos limites de um quadrado (que representa o mundo) e que gira conforme o ritmo de uma espiral (que representa o Tempo). Também pode ser a história de Julius Heckethorn, que deseja construir uma relógio que possa refletir a ordem e, simultaneamente, a desordem da existência; também pode ser a história de como a Inominável (a mulher misteriosa de Abel, como passaremos a chamá-la neste ensaio) nasceu e morreu duas vezes, recebendo em suas mãos um pássaro composto de pássaros, o Avalovara do título; e é também provável que seja a história do próprio Osman Lins tentando fazer uma nova literatura num país em que qualquer espécie de novidade seria oprimida sem misericórdia.



Sim, "Avalovara" é tudo isso e, por isso mesmo, improvável de ser resumido. É um romance cosmológico que se baseia em regras únicas. Como já dissemos, ele é estruturado a partir de um palíndromo: SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. Existem dois sentidos para esta frase: "O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos" ou "O Lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita". Ambos fazem alusões ao modo de como o Criador organiza o mundo em que vivemos; na verdade, é uma sentença sobre a certeza de uma ordem que, talvez, poucos percebem. O palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS pode ser ler de frente para trás e de trás para frente que terá o mesmo sentido e a mesma ordem. A simetria é exata. Distribuído num quadrado com vinte e cinco pequenos quadrados emoldurando cada letra da frase, Osman Lins - inspirado num manuscrito sobre o palíndromo, que teria sido encontrado pelo personagem Abel na Biblioteca Verona em Veneza - sobrepõe uma espiral, que nasce fora do quadrado e dirige-se para o centro da figura, mais exatamente na letra N da palavra TENET.



Este plano parece mostrar os fundamentos de "Avalovara", mas é apenas o início. O quadrado é o mundo - e o romance se deslocará de Ubatuba para São Paulo, do Recife para Paris, de Paris para Amsterdam; mas a espiral é o tempo, seja exterior como interior, e assim iremos da Roma Antiga para a Europa da Segunda Guerra Mundial, do Recife dos anos 50 para a São Paulo da década de 60. Ainda assim, Osman Lins mantém um rigor absoluto sobre o modo de contar cada história: no começo de cada uma, dez linhas para dar as primeiras diretrizes; depois, aumenta-se para vinte, trinta, quarenta linhas, conforme o tempo se dilata, mas também se aproxima do centro do quadrado, que é a letra N.

Entretanto, temos de tomar cuidado na nossa análise. Se ficarmos só na relação entre o quadrado e a espiral com o palíndromo, cairemos no erro do estruturalismo. Osman Lins já nos mostrou as bases de seu romance; agora é hora de olharmos o que ele fala a todos nós, como seres humanos. E o que temos é uma bela história de amor, mesmo que ela tenha seus momentos estranhos, mas que possuem um significado próprio dentro da linguagem simbólica do romance. "Avalovara" começa com dois amantes dentro de um quarto, amando-se na penumbra de um final de tarde em São Paulo: são Abel e a Inominável. Será neste quarto que toda a história de um mundo colidirá com a trajetória de cada um destes personagens, sempre em busca de uma eternidade que foge a cada instante no efêmero que nos persegue. Abel e a Inominável se encontraram num dia de eclipse do sol e se tornaram amantes logo depois; ela é casada com Olavo Hayano, homem misterioso que possui duas faces, como o deus Jano. A Inominável é também um ser dúplice; nasceu e morreu duas vezes: a primeira ao cair de um elevador (teria sido uma tentativa de suicídio?) e a segunda ao dar um tiro no peito logo depois da primeira noite de núpcias com Olavo Hayano. A Inominável é composta de palavras e tudo o que toca se transforma em ser vivo; no quarto onde faz amor com Abel, o tapete onde se deitam saltam leões, serpentes, melodias de "Carmina Burana", de Carl Orff, enchem a sala - tudo é de um excesso planejado, como se o destino da humanidade dependesse dos beijos e dos abraços daquele casal (é interessante notar que Osman Lins parafraseia trechos inteiros do "Cântico dos Cânticos" nos momentos de orgasmo, relacionando os aspectos divino e profano do ato sexual).

Mas, na verdade, a história entre a Inominável e Abel começa muito antes. Sem dúvida, o personagem principal de "Avalovara" é Abel. A escolha do nome é singular e podemos advinhar o seu destino: ele será sacrificado. As constantes visões de um cordeiro que o persegue em sua temporada européia e que aparece, anos depois, na mesma sala onde está com a Inominável, confirmam esta triste sina. Quem será o seu carrasco? E por quê o sacríficio? Tudo tem seu início no Recife, quando Abel, olhando para a água numa cisterna perto de sua casa, vê a imagem de uma Cidade. A epifania o marca profundamente e, durante os anos seguintes, ele procurará o lugar desta Cidade, assumindo sua condição de peregrino, seja na sua terra natal em Recife, na Europa ou em São Paulo. Três mulheres serão os símbolos máximos de cada etapa da busca: Cecília, Anielise Roos e a Inominável. A primeira, apesar das observações de Regina Dalcastagnè em seu ensaio "A Garganta das Coisas", de colocá-la depois do episódio de Abel com Roos durante a temporada européia, se passa, a meu ver, como a fase de inocência e passagem que Abel terá de enfrentar no Recife. Cecília é vislumbrada com seis anos de antecedência, no mesmo instante em que Abel vê a imagem da Cidade na cisterna; os dois se conhecem na casa das gêmeas Hermelinda e Hermenilda, mulheres solitárias que esperam somente a morte para se libertarem da vida. É uma época de transformações para Abel: sua mãe, a Gorda, prostituta aposentada, está entrevada; seu pai se suicida; seus irmãos e suas irmãs se espalham pelo mundo; e, finalmente, ele descobre a sua vocação como escritor ao terminar seu primeiro conto. O relacionamento com Cecília tem lances de mistério e de perigo: os irmãos não gostam de Abel porque ele seria um homem casado (sua esposa se suicida com um tiro no ouvido). Uma noite, os irmãos batem em Abel e em Cecília; ao se limparem do sangue e da sujeira numa praia, Abel descobre que Cecília é uma hermafrodita.

Um dos motivos que me leva a discordar da afirmação de Dalcastagnè que Cecília seria a segunda mulher na vida de Abel, depois de Anielise Roos, são dois detalhes do romance: o primeiro é que Osman Lins mistura os tempos dos acontecimentos para criar uma simultaneidade e assim dando a impressão que não vemos apenas um único Abel, mas três Abéis diferentes ainda que sejam o mesmo; o segundo é o fato de Cecília ser uma hermafrodita - ou seja, os aspectos feminino e masculino da personalidade de Abel ainda estão fundidos, já que a sua consciência ainda não os discriminou. É necessário que Abel passe pela experiência dilacerante da perda e da morte de sua parte feminina, como o que acontece com Cecília quando ela cai de um cabriolé numa praia e quebra o pescoço, para ele procurar a integração de sua alma na Europa, na companhia de Roos.

Anielise Roos é a mulher que será a concretização carnal da Cidade que Abel busca - mas ele não a encontrará nela. Roos se esquiva o tempo todo, viaja para inúmeras cidades européias e Abel, amparado por uma bolsa de estudos, a segue até que possa consumir o seu amor. Juntos vão à catedral de Chartres, onde Abel se depara com a visão do cordeiro que também estará com ele no quarto da Inominável em São Paulo. Ali, Abel conhece um cosmo em miniatura que mostra uma ordem divina relacionada com a ordem humana. Roos afirma que tem de ir embora porque é obrigada a cuidar do amante moribundo; Abel aceita a perda e vê ela ir embora, sufocado por uma dolorosa solidão.

Na sua volta ao Brasil, ao presenciar um dia de eclipse solar, Abel conhece a Inominável, esposa de Olavo Hayano. Rapidamente tornam-se amantes. A Inominável é a carne no Verbo; sua vida é repleta de fatos enigmáticos: seu nascimento e renascimento, seu pai composto por próteses, seu avô jurista que desconhece as verdadeiras leis e, em especial, seu relacionamento com Inácio Gabriel, moço puro e fraco que, ao ser diagnosticado com tuberculose, espera calmamente a morte, sem antes dar de presente à amada, um pássaro feito de vários pássaros que se chama "Avalovara". O nome deste estranho pássaro (que se parece com uma iluminura medieval) é uma síncope de "Avalokitesvara", divindade budista da compaixão infinita que, ao alcançar a consciência suprema, optou por não entrar no nirvana, permanecendo no umbral para poder socorrer os aflitos. O presente de Inácio Gabriel - que fica encravado na alma da Inominável - se petrifica quando Olavo Hayano deflora sua esposa e só recupera a sua beleza ao encontrar-se com Abel.

A Inominável é uma fantástica criação de Osman Lins para mostrar a totalidade da personalidade. É a anima em seu estado puro, pois é quem guiará Abel na escuridão do mundo para que ele possa, finalmente, encontrar a Cidade que tanto procura. Abel percebe, durante os sucessivos atos de amor que acontecem no apartamento em São Paulo, que tanto Cecília como Roos eram antecipações da Inominável, que tudo convergia para aquele momento em que os amantes celebram um amor adúltero, mas também puro e capaz de transcender as prisões do Tempo. Contudo, a própria Inominável é a prova de que o Tempo pode ser alterado. Sua natureza é dúplice: seu rosto, olhos e boca mostram uma outra mulher por trás do seu atual corpo. Como seu marido Olavo Hayano, sua alma bipartida assusta seus amantes. Só Abel compreende aquilo. Assim, os dois se amam como se fosse a última noite de suas vidas, prestes a entrar na Cidade que Abel tanto deseja, Cidade que se revela como sendo o Paraíso e que só será alcançado com a morte.

"Avalovara" é uma profunda meditação de como a arte pode ser um meio de impedir a chegada da morte em nossas vidas. A verdadeira opressão do mundo não é apenas no seu aspecto político; é também a morte de cada espírito que se afoga na tensão entre o efêmero e o eterno. Talvez a arte seja o único meio que pode salvar o ser humano desta tensão - mas ela também pode levá-lo a uma ordem petrificada, se não aceitar a desordem inerente à nossa condição. Aqui entra uma das histórias do livro, a de Julius Heckethorn e seu relógio que reflete a ordem do cosmo. Relojoeiro alemão, vivendo às vésperas do Nazismo, Julius é um amante de Mozart e Scriabin que pretende que sua obra máxima seja a reprodução exata da tensão que há no mundo, como nas nossas almas. Seu relógio é engenhoso: cada hora emite o som de um trecho de uma sonata de Scriabin, mas não de forma linear. A distribuição é aleatória e os sons nunca reproduzem o trecho da sonata na sua totalidade porque Heckethorn fez questão de esconder o décimo-terceiro fragmento - que surgirá no dia em as conjunções astrológicas indicarem o aparecimento de um eclipse solar. A obra de Heckethorn será a única prova da genialidade de seu criador: ele será assassinado na Segunda Guerra Mundial pelos nazistas por causa de sua ascendência inglesa, seus papéis serão queimados e seu relógio será vendido ao embaixador brasileiro na Suíça que, anos depois, venderá para um empresário de São Paulo, que transferirá ao seu filho - justamente Olavo Hayano, que deixará o relógio no seu quarto, o mesmo quarto onde Abel e a Inominável estão juntos e que, surpreendentemente, escutam a sonata de Scriabin por inteiro no exato momento que a Cidade aparece a ambos e que Olavo Hayano aparece com um revólver, pronto para matá-los.

A estrutura de "Avalovara" abarca todo este mundo de tensões, mas nada se compara à tensão da linguagem que Osman Lins provocou para seguir os movimentos do espírito de cada um dos personagens. E é aqui que chegamos ao xis da questão. Em "Avalovara" a linguagem não é um mero instrumento de descrição; ela é o Verbo que transforma a realidade. Contudo, ela não transforma para criar um mundo de fantasia; Osman Lins capta com exatidão o poder transfigurador da palavra. "Avalovara" não é um romance sobre a realidade tal como é; é um romance sobre uma realidade em permanente declínio e que precisa, antes de tudo, de um novo Começo. Entramos aqui numa área perigosa, que é o da especulação gnóstica. Quando o artista cria todo um espelho de cosmogonia para ser uma substituição de um cosmo que, a seu ver, está em permanente desordem ou que abandonou a verdadeira ordem, e se utiliza do dom do Verbo para modificá-la não somente em seu aspecto exterior, mas principalmente em seu aspecto interior, imaginando como poderia ser a existência se pudéssemos recomeçar - então não estamos mais no terreno da mera literatura e sim de algo que está em jogo há muito tempo: a integridade do ser.
FONTE: Orfeu Span

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