As concepções de linguagem em Walter Benjamin, nas quais me apoio para ensaiar esse texto que se inicia, podem não ter um estatuto científico, pois representam uma ruptura nos paradigmas dominantes e racionais acerca de linguagem, e também de conhecimento, instituídos a partir de Platão. Os conceito e as ideias de Benjamin dizem sobre um outro modo de se conhecer e de se apreender as coisas, talvez invisibilizados por certas práxis científicas. A sua posição em face à linguagem traz uma concepção de expressividade, que está baseada numa concepção mítica, arcaica, poética e espiritual. Benjamin tinha um espírito livre, buscava o conhecimento pela experiência, ou melhor, pela experimentação, conceito chave no pensamento desse autor-filósofo que vê na experiência algo realmente durável. Se ponderarmos que todo o conhecimento para se transformar em sabedoria tem que passar antes pela experiência, ou seja, pela experimentação, mais transparente e límpida se tornam as palavras de Benjamin. Se a experiência é própria do homem, logo é pela linguagem e na linguagem que o homem tem a possibilidade de expressar e de compartilhar essa experiência. Mas as coisas não são tão simples quanto aparentam, pois a tarefa de buscar a palavra mais expressiva, mais representativa é, literalmente, trabalho de Penélope. Cito Penélope, que tecia seu manto de dia e destecia a noite, porque texto e tecido são palavras etimologicamente emaranhadas. A relação da palavra texto com tecido – com tecer, textura, tecelagem – nos indica que a metáfora da trama dos fios tecidos para falar das palavras na composição de um texto vão além da sua representatividade. A miológica Penélope ressalta a ideia de composição aberta, sempre inacabada, sempre recomeçada a procura da tessitura perfeita. Sinto que inicio a construção dessa trama textual desfiando fios, buscando desatar nós de teorias ainda cruas, ávidas por transformar-se em sabedoria bem arrematada.
Parafraseando Camões, ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, sem experiência e extra-sensibilidade eu nada diria. Há de se contar com a sensibilidade poética para se exprimir em linguagem verbal o que fora transformado em experiência. Poderíamos pensar aqui que tratamos das funções da linguagem expostas por Jakobson, mais especificamente da função poética – própria da literatura que, nas palavras de Ítalo Calvino “é a terra prometida em que a linguagem se torna aquilo que na verdade deveria ser” -, que diz respeito à mensagem e na qual, segundo o linguísta, reside a própria essência da linguagem. Mas não, “não é bem isso”, como enfatiza Sérgio Sant’anna quando em seu exercício de traduzir o que é pictórico para a palavra. A busca da apreensão da essência das coisas, do intraduzível, que já se sabe frustrada a priori, é do que desejo tratar e é do que trata Sant’anna em seu impressionante conto Cenários, no qual “pinta” com palavras as cores do quadro Nighthawks, de Edward Hopper, abordando as impossibilidades da escrita, as não raras limitações da palavra para expressar a essência das coisas. Mas enquanto, agora, escritora, sigo buscando desenhar o meu dizer que se encontra sempre mais além e desejando que as palavras consigam captar a essência das coisas que quero tecer, mesmo que “para logo depois saber que não, não é bem isso”. Explorar os limites da palavra em si para transmitir o indizível, para traduzir sob forma linguística pura a harmonia de todos os modos do querer e do conseguir dizer: tarefa complicada. Desafio a que se vêem expostos os melhores dos escritores da literatura universal e agora também eu, humilde humana perdida entre parágrafos, nos entremeios de frases, envolta entre fios desfiados de teorias que intento experimentar. Degusto a fragilidade da exposição, a traição da língua mater que se esvaece nos sentidos que não encontro, avanço em busca do tempo perdido nas frases que já compus.
Mikhail Bakhtin, o filósofo da linguagem, na sua Teoria do Romance diz que a língua, em sua determinação linguística, permanece à margem do objeto estético e que o enorme trabalho do artista com a palavra tem por objetivo final a sua superação. O artista liberta-se da língua na sua determinação linguística, da palavra em sua determinante conceituação para vencer o engessamento do significado. Para escrever, assim o faço, logo assim o penso, deve-se passar pelo processo de construção de um sistema de referências (filmes vistos, livros lidos, situações vividas, etc.), que experimentadas precisam ser desconstruídas, misturadas e reinventadas para que algo possa nascer e ser traduzido em linguagem inteligível extra-sensível. Texto é trama, é rede e, não simples metáfora, sinto-me agora presa, imóvel, angustiada em querer tecer o meu dizer que não se fia. Ansiosa por querer livrar-me dessa “cócega incômoda no estômago”, o que, aliás, me lembra, consultando meu sistema de referências experimentadas, o narrador de Cortázar no conto As babas do diabo (PDF). Cortázar, nesse conto, expressa a dificuldade de se transpor a rigidez fixa da fotografia, experimentando-a em linguagem verbal. Já eu tento, atemorizada pela superficialidade e pela servidão do palavreado, falar da dificuldade de se traduzir a subjetividade daquilo que está expresso na linguagem das coisas em linguagem inteligível. Falta-me, óbvio, a genialidade de Júlio, mas sei que devo tentar, pois se eu for embora o computador ficará “petrificado sobre a mesa com esse ar duplamente quietas que as coisas móveis têm quando não se movem”. Aprendi com Foucault , ao tentar traduzir em linguagem verbal uma pintura de Velásquez, que se se quiser manter aberta a relação entre linguagem e o visível, - adaptando: entre linguagem e o indizível -, é preciso “meter-se no infinito da tarefa”. Então, movimento-me, giro a roca em busca da tessitura perfeita, da linguagem pura, da essência linguística das coisas, enquanto busco inspiração recitando, ainda, Drummond : “Já não quero dicionários consultados em vão. Quero só a palavra que nunca estará neles nem se pode inventar. Que resumiria o mundo e o substituiria. Mais sol do que o sol [...]”.
A arte, a expressão literária, admite ou exige artifícios da língua que extrapolam a correção gramatical, a relação signo/significado, isto é, extrapolam a expressão verbal segundo as leis lógicas ou naturais da linguagem, necessita de mais artifícios do que aqueles os que lhe são inerentes. A exação puramente linguística na expressão do pensamento ou das sensações é talvez para a arte de escrever o que o desenho, no seu sentido mais restrito, é para a pintura. Segundo Sartre, em O Que é a Literatura?, publicado em 1948, escrever é uma ação de desnudamento. O escritor revela ao escrever, o mundo, e em especial o Homem aos outros homens, para que estes tomem, em face ao objetivo assim revelado, a sua inteira responsabilidade. Não basta ao escritor ter escrito certas coisas, é preciso ter escolhido escrevê-las de um modo determinado, expondo seu mundo, com elementos estéticos de criação literária. A relação especial do homem e a língua, nos diz o autor com quem iniciamos esse ensaio, Walter Benjamin, decorre, exatamente, do acto da criação. Na literatura, então, encontramos exemplo canônico da nem sempre fácil arte de traduzir em palavras as coisas ditas indizíveis. Há algum tempo venho dedicando-me a observar e estudar a literatura de jovens escritores, escritores contemporâneos, que de uma forma ou tem a tarefa de movimentar a literatura traduzindo, como que por tradição, as coisas de seu mundo. Benjamin, em A tarefa do tradutor se pergunta: “que coisa “diz” afinal, uma obra literária?”. Diz da coisas indizíveis ou da impossibilidade de se dizer o todo em palavras. A fim de ilustrar o que busco aqui dizer, sem realmente o dizer nestas minhas emaranhadas linhas, selecionei um texto, do qual reproduzirei trechos, de um desses jovens escritores, a quem dedico minhas pesquisas.
O conto O velho branco , do gaúcho Daniel Galera está reunido em uma recente coletânea de contos, organizada por Nelson de Oliveira, intitulada Geração Zero Zero, fricções em rede. Na leitura de O velho branco alguns pensamentos de Benjamin me assaltaram a concentração e transbordaram a memória. A dificuldade de se dizer o que se quer, de transmitir na escrita aquilo que pertence ao sentimento, traduzir para a linguagem dos homens o que pertence a linguagem das coisas, “falta linguagem” diz Galera. O conto referido, à primeira impressão, parece não querer comunicar nada em especial. Trata da admiração do narrador por uma personagem que, mais velha, faz parte do mesmo clube onde praticam, narrador e personagem, natação. A personagem chamada de “o velho branco” é experiente e em suas caladas braçadas desperta a curiosidade do narrador que passa a observá-lo e permite-se descrever-lhe a impressão que este senhor lhe causa. Depara-se com a temeridade de transformar o que pretende expressar ao leitor, do que intenciona comunicar, em uma mera descrição das coisas, a servidão do palavreado, fantasma de todo o escritor. Walter Benjamin, em Sobre a Linguagem em Geral , diz que "[...] para se compreender uma essência linguística temos sempre que nos interrogar sobre qual a essência espiritual de que ela é expressão imediata”. O propósito central que norteia os tratados do autor-filósofo é o de libertar toda a linguagem do caráter instrumentalista, assim também é norteado o trabalho de escritores, jovens ou experientes, em suas aventuras com a linguagem. Galera expressa seus anseios no trato com a palavra e a sua reflexão metaliterária, ou metalinguística se observa nos excertos abaixo :
.
E acho que foi apenas no último ou nos dois últimos seis ou sete meses que percebi com clareza tudo o que o Velho Branco significa e que é tão complicado de descrever.
Dificilmente vou conseguir explicar a grandeza metafísica dessa resposta para quem não a identificou de cara. Além disso, neste texto não há como reproduzir a voz do Velho Branco - o som de algo sólido tornado quebradiço em condições inesperadas, como o estalo final do tronco de uma sequoia centenária que está começando a tombar depois de ter sido seccionada na base por uma motoserra -, tampouco a expressão facial que ostentava ao me responder [...] - ou sua postura geral naquele momento [...]. Posso dizer apenas que naquele instante me viera à mente todas as coisas de que gosto justamente porque sou bom nelas, e não ao contrário. Me senti pequeno e ignorante, mas um ser pequeno e ignorante para o qual a salvação estava ao alcance.
Num mundo onde o velho branco existe, não poderá haver vítimas. Suas braçadas de boia e sem palmar nos dizem que a probabilidade do que acontece é absoluta. Ao vê-lo nadando, você saberá que ele sabe disso tudo e saberá que ele sabe de outras coisas, coisas impossíveis de compartilhar, pois falta linguagem.
Ainda que em Benjamin a tradução de que fala seja especificamente entre obras literárias escritas em línguas diferentes (estrangeiras), poderia eu fazer associação, a partir desse conto de Galera, à tradução de linguagens outras para a escrita literária. Associar o conceito de 'tradutor' usado por Benjamin ao trabalho do escritor que ao tentar exprimir em suas produções literárias sentimentos e sensações, acaba por operar também como um tradutor. Benjamin diz que o conceito de tradução é "amplo e poderoso", uma vez que trata-se, para a recepção, da "tradução da linguagem das coisas para a linguagem do homem". A tradução, segue o autor, "adquire o seu significado total quando se compreende que qualquer linguagem mais elevada (com exceção da palavra de Deus) pode ser considerada como tradução de todas as outras". “Tradução é uma forma”. A partir desta tese central, Benjamin reconceitua a tarefa do tradutor: trans-pôr, trans-formar. Entenda-se: formar noutra língua, reformar na língua da tradução a arte do original. A Tarefa do Tradutor está fundamentada sobre uma concepção de linguagem, uma teoria da linguagem, que Walter Benjamin constrói ao longo de sua obra, onde os textos vão se interligando, dialogando, se traduzindo.
"[...] Nunca alcançara de forma total essa região, mas nela está aquilo que, numa tradução, é mais do que mera informação. Se quisermos definir com mais rigor esse cerne essencial, poderemos dizer que ele é aquilo que na tradução é, por sua vez, intraduzível.Poderemos extrair dela tanta substância meramente informacional quanto quisermos e traduzi-la; mas permanecerá sempre um resto intocável, no sentido do qual se orientou o trabalho do verdadeiro traduzir. esse resto não é transmissível como o é a palavra poética do original, porque a relação entre conteúdo e linguagem é totalmente diferente no original e na tradução". (BENJAMIN)
Traduzir em palavras próprias as ideias desse filósofo não é construir pontes, trata-se de obra mais complexa, pois falta-me linguagem. Mas coisas só podem ser expressas em linguagem, ainda que essa expressão não consiga trazer à linguagem as coisas mesmas, mas apenas sua essência espiritual que é linguística. Desse modo, a linguagem humana das palavras pode ser compreendida enquanto “tradução” da “muda linguagem da natureza”. Mas “a tradução é sempre um processo imperfeito” como ressalta Coetzee na voz de sua Elizabeth Costello. Por isso sinto que este não representa um texto liso, bem costurado, mas textos podem ser enviesados e ainda assim admirados. "É precisamente isso que o conceito de revelação significa quando considera a intangibilidade da palavra como condição única e suficiente e, como caracterização do divino da essência espiritual, que nela se manifesta ”. Como dizia o poeta Mário, em seus quintanares: “Se as coisas são intangíveis... ora! Não é motivo para não querê-las” . Mesmo querendo o intangível, a palavra para expressar o inexpressível, perceber-se-ão de que este meu ensaio de escrita, esta minha fiação está apenas alinhavada. Desculpo-me pela falta de arremate, mas falta-me, falta-me linguagem, e sinto que - dentre o tudo, ou o nada, do que eu fiei e desfiei – não, não é bem isso!
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ReferênciasBAKTHIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini. São Paulo: Hucitec-UNESP, 1990.
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008.
BENJAMIN, Walter. Benjamin, Walter. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana. In: Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio d’água, 1992, p. 189.
CALVINO, ítalo. Seis propostas para o novo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
COETZEE, J.M. As Humanidades na África. In: Elizabeth Costello: oito palestras. São Paulo: Companhia das Letras p. 147.
CORTÁZAR, Júlio. As babas do diabo. In: As Armas Secretas. Rio de Janeiro: José Olympo, 1994.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas - uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
GALERA, Daniel. O velho Branco. In: OLIVEIRA, Nelson (org). Geração zero zero: fricções em rede. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2011.p 118.
QUINTANA, Mário. Das Utopias. In: CORONEL, Luiz (Org.) Mário Quintana: 100 anos – A quinta essência de Quintana. Porto Alegre: Mecenas Editora, 2005.
SANT'ANNA, Sérgio. Cenários. In: Contos e Novelas Reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Arquivo Cultura de Travesseiro:
Tecendo Fios e Textos
Angelus Novus - Walter Benjamin
Funções da linguagem
Geração Zero Zero, fricções em rede.
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