José Eduardo Agualusa - Crônicas

ANDO A LER UM DICIONÁRIO
[José Eduardo Agualusa]


Há poucos dias, na Feira do Livro de Lisboa, um homem parou diante de mim, e depois de me cumprimentar apresentou-me o filho, um menino dos seus onze anos: "Este é o António. Diga-lhe alguma coisa que o faça ler. Lá em casa todos nós temos a paixão pelos livros, há livros em toda parte, mas ele não se interessa por nenhum. O que fazer?"

Tentei, um tanto assustado, fugir ao desafio. Dei uma resposta qualquer, evasiva, mas depois que eles se foram embora pus-me a pensar naquilo. Como foi que eu próprio descobri a literatura? Devia ter a idade do António quando encontrei na biblioteca dos meus pais uma belíssima enciclopédia ilustrada, do início do século vinte, em dois volumes. Procurava-se a palavra "aves", por exemplo, e havia uma ou duas páginas com preciosas estampas coloridas de aves de todo o mundo. Tinha, além disso, imensas mulheres nuas — um deslumbramento! Lembro-me em particular da famosa tela de Rubens, "O Julgamento de Paris", talvez o primeiro concurso de misses de que há notícia. Paris, Príncipe de Tróia, tem de decidir quem é a mais bela: Hera, Atena ou Afrodite. São três mocetonas bem nutridas, três deusas clássicas, de rijas e luminosas carnes brancas. A bem dizer foi por causa das mulheres que eu me apaixonei pelos livros. Descobri que por detrás daquelas imagens, por detrás de cada mulher, mais ou menos despida, havia um enredo, e passei a interessar-me por essas histórias.

Nunca mais deixei de ler. Leio de tudo um pouco, romances, ensaios, poesia, e, é claro, continuo a interessar-me por enciclopédias e dicionários. Gosto particularmente de ler dicionários. A minha última paixão, em matéria de dicionários, chama-se Houaiss. Esperei por ele uns bons seis anos. Sempre que ia a uma bienal do livro, no Rio de Janeiro ou em São Paulo, perguntava pelo Houaiss. "Sai para o ano", respondiam-me imperturbáveis os responsáveis pelo projecto, e, para manterem aceso o meu interesse, agitavam factos e números: mais de 228 mil verbetes, extensos grupos de sinónimos e antónimos, levantamentos de homónimos, parónimos, colectivos, informações de gramática e uso, bem como da origem de cada palavra; é o primeiro dicionário a registar a data em que a palavra entrou na língua, etc. e tal. Finalmente, há alguns meses, o embaixador do Brasil em Berlim, Roberto Abdenur, ofereceu-me um exemplar (três quilos e seiscentos gramas em papel bíblia!), e pude assim confirmar a justeza da publicidade. Mais recentemente pedi a uma amiga que me enviasse, de São Paulo, a versão electrónica do Houaiss. Não me desiludiu.

Conheci o António Houaiss há muitos anos, numa ocasião em que veio a Lisboa defender o Acordo Ortográfico. Fiquei imediatamente seduzido pelo esplendor do seu português, o rigor, a riqueza, o entusiasmo com que aquele frágil velhinho carioca, filho de imigrantes libaneses, falava a nossa língua. Ouvir o António Houaiss discursar era uma alegria para a alma. Lembro-me de Natália Correia (a falta que ela faz a Portugal!), aos gritos, numa das salas da Assembleia da República:

"Ajoelhem-se! Ajoelhem-se diante da erudição deste homem! Aprendam como se fala a nossa língua!"

O dicionário em que António Houaiss trabalhou durante tantos anos, e que acabou por ser concluído, com o apoio de uma vasta equipa de especialistas, brasileiros, portugueses e africanos, já após a morte do seu mentor, é o melhor monumento à memória do grande lexicógrafo. Por incrível que pareça, porém, não vi na Feira do Livro nenhum exemplar à venda — e refiro-me à edição brasileira, da Editora Objetiva, porque (ó escândalo!) não existe ainda uma versão portuguesa.

O velho Houaiss teria sabido, certamente, o que dizer ao outro António, de onze anos, de forma a cativá-lo para a literatura. O que quer que ele dissesse parecia ser sempre novo. As palavras saíam-lhe dos lábios vigorosas e polidas, a brilhar, como se tivessem sido estreadas naquele mesmo instante. Suspeito que o pequeno António iria à procura dos livros, depois de ouvir António Houaiss, apenas no afã de descobrir neles, uma outra vez, a luz da nossa língua.




ILUSTRES DESCONHECIDOS
[José Eduardo Agualusa]

Um dia acontece. Você entra num autocarro. Lá fora chove a cântaros e você está encharcado até aos ossos. Sente-se irritado e deprimido, porque falta uma eternidade para chegar o Verão, porque não gosta do seu chefe, porque lhe dói um dente, porque já perdeu todas as ilusões e sabe que nunca beijará a Nicole Kidman. Então pisa inadvertidamente o pé demasiado grande de um sujeito qualquer. Tem vontade de repisar o pezudo. Afinal chove lá fora e ã Nicole Kidman jamais o beijará. A um homem encharcado, um pobre homem à deriva numa cinzenta e fria tarde de Inverno, com dores de dentes, a um homem que já desistiu da Nicole Kidman, a um homem assim não se lhe pode exigir paciência. Você, no entanto, teve uma boa educação. Controla-se e pede desculpa. Mas eis que o pisado, o pezudo, reage aos gritos, ofendendo de forma vil a senhora sua mãe. Discutem, caramba!, mãe é mãe. E então o homem ergue o dedo:

"0 senhor sabe com quem está a falar?"

Um dedo tremendo. Uma tremenda frase. Nunca a escutou? A sério?! Um dia acontece. Eu escutei. Num cenário muito mais confortável, reconheço, embora também estivesse encharcado e chovesse lá fora. Foi nos banhos termais do Hotel Gellert, em Budapeste, numa piscina com água a trinta e oito graus de temperatura. Flutuava de costas, de olhos bem fechados, imaginando o momento em que beijarei a Nicole (ainda não perdi as ilusões), quando de repente alguna coisa vasta e mole caiu em cima de mim. Mergulhei naquela água nublada, aflito, sentindo que me afogava, que me ia afogar ali -mesmo, numa tigela de sopa, eu, filho de um professor de natação, até que consegui re-cuperar o pé e emergir, tossindo muito, sob a luz lassa e húmida. Os outros banhistas, meia dúzia de paquidermes muito velhos e muito alvos, vestidos apenas com um curto avental de pano, observavam-me de soslaio, disfarçando o riso. A coisa que caíra em cima de mim, quase me afogando, parecia-se com um deles. Porém, assim que abriu a boca - não para se desculpar, antes para me recriminar por estar ali, boiando, atravessado no seu caminho -, reconheci o sotaque: era um turista americano. Discutimos, claro, e eis que o vejo erguer o dedo:

"O senhor sabe com quem está a falar?" Não, desgraçadamente eu não sabia. O velho, então, encheu-se de paciência:

"Conhece o Robert Capa?"

Anuí com a cabeça. Quem não conhece?

"Ele nasceu aqui, sabia?, em Budapeste. E não se chamava Robert Capa, chamava-se Andrei Friedmann. Bem, o tipo tem uma fotografia tirada a 6 de Julho de 1944, durante a invasão da Normandia, que mostra um soldado americano a avançar para a praia, debaixo de fogo, só com o rosto fora da água. Já a viu?"

E quem não viu? Um pobre rapaz com o capacete enterrado na cabeça, agarrado a uma arma, entre destroços. Olhando aquela imagem consegue-se até ouvir o fragor das explosões.

O velho encarou-me em triunfo:

"Pois sou eu!"
Depois fez uma vénia elegante - quero dizer: tão elegante quanto lhe permitia o ridículo avental - e acrescentou:

"Sou o mais famoso desconhecido do mundo."

Contou-me a sua história. Não acreditei numa única palavra, mas ficámos amigos. Ouvi-o com atenção, em parte por delicadeza, em parte porque tenho um fraco por desconhecidos, mesmo os ilustres. É verdade. A maior parte das pessoas quer saber tudo sobre Nefertiti ou Tutancamon. A mim o que realmente me fascina é o destino do anão negro Seneb, chefe do guarda-roupa real e de todos os anões do palácio do faraó, dois mil e quatrocentos anos antes de Cristo. Recordo-me, a propósito, de uma outra fotografia de Robert Capa, mais famosa, que fixa o instante exacto da morte de um combatente republicano durante a Guerra Civil de Espanha. Adivinha-se naquela imagem todo um romance por escrever. Um triângulo de ódios e amores: a história do homem que se vê, caindo para trás, os braços abertos; o destino do que o espreitava atrás de uma câmara, eternizando o momento, e o do que o matou com um tiro certeiro. Tenho a certeza de que nenhum ensaio, nenhuma biografia de Francisco Franco, ou de outra figura notória da época, nos poderia ensinar mais sobre as razões profundas do conflito.

Portanto, quando um dia você entrar num autocarro, enquanto lá fora chove a cântaros, e pisar um pezudo e ouvir a tremenda frase: "Você sabe com quem está a falar?"

Quando isso acontecer domine a vontade de o pisar de novo, respire fundo e sugira:

"Não, não sei. Quem é você?"

Talvez seja o sujeito que, naquela triste tarde de Espanha, matou o combatente republicano. Os autocarros - acreditem - estão cheios de ilustres desconhecidos.


*Editado originalmente na revista Pública



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