Dia Mundial do Livro: Uma Homenagem a J. G. Ballard












Hoje, 23 de abril, comemora-se o "Dia Mundial do Livro". Aqui homenagearemos o Livro de forma diferente. Não discursarei sobre a importância da literatura, a minha paixão por livros, os escritores que me encantam, poesia ou coisas do gênero. Homenagearemos o Livro falando sobre a mais recente perda literária, o escritor J. G Ballard, um dos grandes nomes da literatura britânica de ficção científica das últimas décadas, falecido esta semana, aos 78 anos.

Ballard era filho de um executivo britânico, nasceu quando o pai servia em Xangai, na China. Cresceu na comunidade de ocidentais residentes na cidade, até que, na II Guerra, foi mantido por três anos como prisioneiro em um campo dos invasores e ocupantes japoneses. Essa foi a base para seu romance semi-autobiográfico O Império do Sol, mais tarde filmado por Steven Spielberg.

Não foi a única incursão da obra de Ballard no cinema. Autor de romances polêmicos nos quais o vazio da sociedade burguesa europeia é criticado pelo retrato de personagens desviantes transformados em protagonistas em narrativas com elementos de ficção científica, Ballard foi levado às telas outras vez nos anos 1990 por David Cronenberg, que filmou Crash, livro no qual um homem, após um acidente de tráfego, se vê atraído por uma comunidade de malucos para os quais desastres de automóvel são ao mesmo tempo diversão e estímulo erótico. O livro teve uma edição pela Record na esteira do filme e foi reeditado há poucos anos pela Companhia das Letras, atual casa publicadora de Ballard no Brasil.

"O Reino do Amanhã" é outro exemplo da mente delirante de Ballard, ao narrar a história de um publicitário desempregado que viaja até um subúrbio de Londres para enterrar o pai, morto supostamente por acidente em um shopping center. O personagem, Richard Pearson, acaba por deparar com uma realidade delirante na qual o shopping é o epicentro de uma comunidade fascista dedicada a ataques violentos contra imigrantes. Os últimos trabalhos do autor "Super-Cannes", "Millennium People" e "Kingdom Come" foram sucesso nas livrarias, mas criticados nos círculos literários.

Assim, homenageamos o Livro com o decanso deste escritor. Sendo "O Reino do Amanhã" o romance mais recente do escritor britânico J.G.Ballard, lançado aqui no Brasil pela Companhia das Letras no início do ano, encerramos o presente artigo com um trecho desta obra. Boa leitura a todos...



Os subúrbios sonham com a violência. Adormecidos em seus modorrentos palacetes, protegidos por benevolentes shopping centers, esperam pacientemente pelos pesadelos que os despertarão para um mundo mais apaixonante...

Doce ilusão, pensei comigo enquanto o aeroporto de Heathrow ia diminuindo no espelho retrovisor, e das mais tolas: o arraigado hábito de um publicitário de saborear a embalagem em vez do biscoito. Mas eram pensamentos difíceis de afastar. Manobrei o Jensen para tomar a pista lenta da M4 e comecei a ler as placas que me davam as boas-vindas aos subúrbios mais afastados de Londres. Ashford, Staines, Hillingdom - destinos impossíveis que figuravam apenas nos mapas mentais de homens de marketing desesperados. Para além de Heathrow ficavam os impérios do consumismo, e o mistério que me obcecou até o dia em que saí pela porta da minha agência pela última vez. Como despertar uma gente entorpecida que tinha tudo, que comprara todos os sonhos que o dinheiro pode comprar e sabia que tinha sido uma pechincha?

Uma luz piscava no painel, uma seta insistente que eu tinha certeza de não ter acionado. Mas uns cem metros à frente es tava uma estrada secundária que eu de alguma forma sabia que esperava por mim. Reduzi a velocidade e saí da rodovia, adentrando uma alameda flanqueada de verde que se curvava sobre si mesma, depois de passar por uma placa que me instigava a visitar um novo complexo executivo e centro de conferências. Freei bruscamente, pensei em fazer a manobra para voltar à rodovia, mas desisti. Sempre deixe a estrada decidir...

Como muitos londrinos da região central da cidade, eu me sentia vagamente desconfortável toda vez que deixava o perímetro urbano e me aproximava das franjas suburbanas. Mas na verdade tinha passado minha carreira de publicitário cortejando insistentemente os subúrbios de alto padrão. Longe da metrópole nervosa, exasperante, as cidades-satélites que se aconchegavam no ombro protetor da M25 eram praticamente uma invenção da indústria publicitária, ou pelo menos era assim que os executivos responsáveis pelas contas dos clientes, como eu mesmo, gostavam de pensar. Os subúrbios residenciais, todos acreditaríamos até a morte, eram definidos pelos produtos que vendíamos a eles, pelas marcas, modelos e logotipos que, por si só, definiam suas vidas.

No entanto de alguma maneira eles resistiam a nós, tornando-se esquivos e autoconfiantes, o verdadeiro centro da nação, sempre nos mantendo a certa distância. Contemplando o sereno mar de empenas de tijolo aparente, os aprazíveis jardins e parquinhos de escola, eu sentia uma pontada de ressentimento, a mesma dor que me lembrava ter sentido quando minha mulher me beijou com ternura, acenou um tanto timidamente da porta do nosso apartamento em Chelsea e me deixou para sempre. A afeição pode se revelar nos momentos mais cruéis.
Mas eu tinha uma razão especial para me sentir desconfortável: poucas semanas antes, aqueles aprazíveis subúrbios tinham se erguido, mostrado os dentes e dado o bote para matar meu pai.

Às nove horas daquela manhã, quinze dias depois do funeral de meu pai, parti de Londres rumo a Brooklands, a cidade entre Weybridge e Woking que havia crescido em torno do autódromo dos anos 1930. Meu pai passara a infância em Brooklands e, depois de uma vida nos ares, o velho piloto de aviões de passageiros retornara para viver lá seus anos de aposentadoria. Eu iria me encontrar com seus advogados, verificar como estava indo a execução de seu testamento e colocar seu apartamento à venda, fechando formalmente uma vida que eu nunca havia compartilhado. De acordo com o advogado testamenteiro, Geoffrey Fairfax, o apartamento tinha vista para a pista desativada de corrida, um sonho de velocidade que devia lembrar ao velho todas as pistas de pouso e decolagem que ainda cruzavam sua mente. Quando eu colocasse os uniformes dele na mala e fechasse a porta atrás de mim, uma última linha seria traçada sob o ex-piloto da British Airways, um pai ausente que um dia eu cultuei como herói, mas que raramente encontrei.

Ele se separara de minha mãe enérgica, mas hipersensível, quando eu tinha cinco anos, percorrera milhões de milhas até os mais perigosos aeroportos do mundo, sobrevivera a duas tentativas de seqüestro para acabar morrendo num bizarro tiroteio num shopping center de subúrbio. Um doente mental em seu dia de liberdade semanal conseguiu entrar com uma arma no átrio do Brooklands Metro-Centre e disparou ao acaso contra a multidão da hora do almoço. Três pessoas morreram e quinze ficaram feridas. Uma única bala matou meu pai, uma morte que caberia mais em Manila ou Bogotá ou na parte leste de Los Angeles do que num arborizado subúrbio inglês. Lamentavelmente, meu pai vivera mais do que seus parentes e do que a maioria de seus amigos, mas pelo menos cuidei de seu funeral e lhe fiz companhia em sua passagem para o outro lado.

Enquanto eu deixava a rodovia para trás, a perspectiva de girar de verdade a chave na porta da casa de meu pai começou a assomar diante do pára-brisa como um alerta de perigo vagamente ameaçador. Uma grande parte dele ainda estaria lá - o cheiro de seu corpo nas toalhas e roupas, o conteúdo de seu cesto de roupa suja, o odor singular de velhos best-sellers nas estantes. Mas sua presença teria como contraponto minha ausência, as lacunas que estariam em toda parte, como alvéolos vazios num favo de mel, vácuos humanos que seu próprio filho nunca fora capaz de preencher quando ele, o pai, abandonou sua família por um universo feito de céus.

Os espaços estavam igualmente dentro de mim. Em vez de me pendurar em Harvey Nichols com minha mãe, ou de passar uma infinidade de tempo tomando chá na Fortnum's, eu devia ter estado com meu pai, confeccionando nossa primeira pipa, jogando críquete francês no jardim, aprendendo a acender uma fogueira e a velejar num escaler. Pelo menos empreendi uma carreira na publicidade, bem-sucedida até o dia em que cometi o erro de casar com uma colega e proporcionar a mim mesmo um rival que eu não tinha a menor chance de vencer.

Tradução: José Geraldo Couto


Fonte: ClicRBS



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Comentários

  1. Quando penso que li muito, dou uma passadinha por aqui, e penso que não li nada. Gostaria de ter tempo para ler tudo. Eis que instigasse a vontade de ler mais de J G Ballard. Obrigada.
    Beijão.
    Sil.

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  2. Amiga Sil,
    Nunca leremos muito ou tudo, é impossível! São muitos os escritores e mais ainda os livros. Por isso o cinema é a saída, bendita e bela arte! O que não "conseguimos" ler, assistimos... rsrsrsrs.
    Bom te ter aqui! Muitos bjs!!!

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