Leitura e compreensão de texto falado e escrito como ato individual de uma prática social

Luiz Antônio Marcuschi

Muito já se falou de Marcuschi aqui no Cultura de Travesseiro. Seja  nas inúmeraveis citações ou em  artigos específicos sobre seus textos -  tais como Gêneros Textuais e Oralidade e Letramento - o professor-linguista é inspiração para muitas postagens. Marcuschi é uma autoridade em linguística e foi a partir de suas ideias que voltamos nossas atenções à relação entre fala e escrita, relação essa, até então, vista como dicotômica. Marcuschi mostra que é  falsa a imagem de  fala e escrita tidas como uma dicotomia, pois - assim acredita não só Marcuschi, mas também linguístas como Koch, Fávero, entre outros -  a oralidade e a escrita configuram um continuum tipológico, caracterizado, de um lado, pelas peculiaridades de cada uma dessas modalidades e, de outro, pelas semelhanças percebidas em diversos gêneros - o que faz com que às vezes se torne bastante difícil definir o limite entre elas.
O artigo de hoje apresenta um resumo do texto Leitura e compreensão de texto falado e escrito como ato individual de uma prática social, escrito por Marcuschi. A apreensão das principais ideias desse texto  talvez possam contribuir para a compreensão do continuum de que o autor nos fala.


Leitura e compreensão de texto falado e escrito
como ato individual de uma prática social


Nosso uso diário da língua

Todos os que têm acesso à escrita podem desenvolver quatro habilidades no uso da língua: falar e escrever, ouvir e ler. Evidentemente, a distribuição do tempo no desempenho dessas atividades não é proporcional. Pesquisas realizadas com estudantes americanos revelaram que o tempo desses estudantes está assim divido: (16h)
Ouvindo: 42%                       Falando: 32%
    Lendo: 15%                 Escrevendo: 11%

Isso mostra que, mesmo em uma sociedade desenvolvida, os estudantes não consomem mais do que quatro horas por dia lendo ou escrevendo. Transpondo essas observações para o panorama brasileiro, Marcuschi supõe que não só a distribuição do tempo, mas também as condições e as chances de acesso às quatro habilidades são desproporcionais.

Independente do tempo despendido, ler e escrever são duas práticas sociais básicas, a ponto de “os índices de alfabetização serem fatos vistos como indicadores da saúde de uma sociedade e um barômetro do clima social” (GUMPERZ, 1986). A alfabetização não é apenas a simples habilidade de ler e escrever, mas uma habilidade institucionalizada como um certo status, mas não se deve supervalorizar a escrita, a fim de evitar distinções (preconceitos) entre povos letrados e iletrados.

Marcuschi define, então, o objetivo do artigo que escreve - Leitura e compreensão de texto falado e escrito como ato individual de uma prática social – que é desenvolver algumas reflexões sobre a leitura e compreensão de textos (tanto oral quanto escrito) tomando o ato individual de leitura como uma prática social. Marcuschi assim divide seus objetivos:

1. Evidenciar a importância de tratar textos orais e escritos na escola, buscando desmitificar, assim, a dicotomia oralidade x escrita, já que esta possui traços da oralidade.

2. Esclarecer que a escrita não tem valor intrínseco e autônomo, distinguindo os indivíduos entre os incapazes de pensar logicamente (iletrados) e os capazes de tal (letrados).

3. Mostrar alguns dos mecanismos e fatores envolvidos na atividade de compreensão do texto, sugerindo maior respeito pela criatividade nas práticas escolares, que não devem submeter os alunos a respostas estanques, como se um texto só tivesse apenas uma leitura.


Ouvir e ler como atividades criativas
Falar e escrever, ouvir e ler são igualmente ações ativas, produtivas e criativas, consequentemente, considerar os textos como essencialmente independentes é mal compreender o funcionamento comunicativo da língua. Não seria aconselhável distinguir radicalmente a compreensão entre textos falados e textos escritos como atividades diversas. Possuem sim diferentes formas de manifestação e organização.

Considerando que os alunos estão submetidos em mais de 80% do tempo à condição de ouvinte, ignorar a leitura dos textos orais é passar por cima do texto do professor. É sugestiva a hipótese de que o rendimento escolar depende muito do texto do professor, seja quanto às estruturas linguísticas, o léxico ou a forma de organização discursiva da informação. (p.40).

 Estudos realizados com estudantes ingleses acerca da compreensão de aulas expositivas em segunda lingua, mostraram que:
a) aulas com grande número de  micromarcadores conversacionais dá um menor rendimento do que uma aula com maior número de macromarcadores.
b) uma aula sem marcadores também oferece baixo rendimento.






































Desde que a criança se inicia na interação linguística ela o faz oralmente e esta continuará sendo sua modalidade comunicativa linguística predominante. São inúmeras e diferenciadas as situações comunicativas a serem enfrentadas, de modo que o domínio da modalidade oral não representa o seu domínio em todo tipo de texto orais. Se isto já ocorre na oralidade, a passagem para outra modalidade, a escrita, será mais penosa.

Relação entre a fala e a escrita
 
Embora entre o código gráfico e o fônico se verifique uma dicotomia estrita, entre a fala e a escrita não se pode postular tal polaridade absoluta, mas sim um continuum: uma é a diferença entre grafia e som e oura entre o discurso escrito e o discurso oral (cf. Koch e Oesterreicher, 1986). Nesta exposição restringir-me-ei exclusivamente à questão da fala e escrita quanto à compreensão[...] (p.42)

Mas, tanto a fala quanto a escrita tem a ver com textos que serão contextualmente interpretados , ou seja, em ambas modalidades existe um contexto. Assim, “conhecimento pragmático do mundo e dos usos da língua serão sempre requeridos tanto dos ouvintes como dos leitores na interpretação da linguagem”.

As pessoas que usam uma linguagem marcadamente de dependência situacional (contexto) terão maior dificuldade na leitura do texto escrito.
Por que textos escritos são mais difíceis de compreender quando ouvido do que quando lidos?


O caso de um texto sem o seu contexto:
A compreensão de um texto não se dá somente na apreensão de significados, compreender uma sentença ou um texto exige também uma contextualização cognitiva.

Aqui Marcuschi apresenta um texto que usou em sua aula. Retirou do texto a introdução e o final que se dirigiam explicitamente aos "companheiros da Força Aérea". Solicitou aos seus alunos que informassem quem escrevera o texto e com que finalidade. Ninguém chegou a resposta "certa", pois, conforme o autor, ao contrário do primeiro exemplo (em que era possível reconstruir, através do texto um contexto social, mesmo sem poder indicar todos os seus referentes textuais) neste nos falta a contextualização, imprescindível para a reconstrução e compreensão do texto.

O caso de um texto com endereço certo mas não expresso:
Como chegamos a saber que para compreender um certo texto temos que interpretá-lo não literalmente? Os aspectos gramaticais e contextuais nem sempre são suficientes.

Neste outro caso, o autor indaga sobre a dificuldade de estabelecer limites precisos no processo de interpretação e compreensão textual e pergunta: até que ponto compreender textos é um ato criativo ? Quais os seus limites?

A proposta é feita através de uma notícia de jornal em que a intenção não está explicita no texto, ou seja, a interpretação literal, não corresponde a intenção "real" do texto. Marcuschi diz que o uso dos ATOS INDIRETOS é uma estratégia muito comum, frequentemente a utilizamos na hora de criticar ou xingar, "as pessoas raramente especificam tudo o que pretendem comunicar" (p.49).

O caso de um texto conversacional:
Por que nos indagamos com frequência se entendemos o texto que acabamos de ler e não nos indagamos se entendemos o que nosso companheiro de diálogo acabou de dizer?

O texto apresentado é uma conversa telefônica em que a inferência é usada para a compreensão do diálogo. Para a compreensão de textos orais exige-se muita capacidade inferencial (raciocínio lógico) o que parece não faltar as pessoas, haja vista o fato de ser mais comum as pessoas se entenderem do se mal-entenderem.


Algumas condições para a compreensão de texto:
Os textos apresentados tem o propósito de exemplificar alguns dos aspectos teóricos envolvidos na leitura, estabelecendo em que operam os processos de compreensão nos diversos tipos de texto.

Alguns aspectos interessantes envolvidos nos processos de compreensão são:

1. Condição de base textual: primeira condição para organização e transmissão de sentido e compreensão é a existência de um sistema linguístico de domínio comum.

2. Condição de conhecimentos relevantes partilhados: não só o linguístico, mas também o conhecimento compartilhado é importante.

3. Condição de coerência: a compreensão só será significativamente produtiva se o texto for coerente.

4. Condição de cooperação: a compreensão se dá de forma interacional e negociações bilaterais que se evidenciam na colaboração mútua.

5. Condição de abertura textual: compreensão se submete à condição o texto pode ter n possibilidades de interpretação.

6. Condição de base contextual: presença de contexto suficientes situados num tempo e espaço, definidos tanto para a produção como para a recepção.

7. Condição de determinação tipológica: a qualidade textual só ocorre em se considerando o tipo de texto, pois cada tipo carrega em si condições restritivas específicas.
Então, compreender é perceber relevância e estabelecer relações entre vários elementos. O ato de ler, apesar de ser individual, acha-se submetido às condições que se fundam nas práticas sociais. Mais do que um jogo de adivinhação a compreensão é um jogo de inferências comandado pelo conjunto das condições.

A compreensão é um processo complexo que envolve percepção de elementos visuais, seleção de saliências textuais, predição de hipóteses, confrontação e testagem das hipótese, confirmação ou reconstrução para chegar a um ponto final. Uma conversa entre amigos e uma conferência universitária obedecerão a estratégias de produção e recepção diferenciadas.
[...]o texto se apresenta como uma rede, constituída por vários fios tais como a organização gramatical, a estrutura léxica, as informações objetivas, as pressuposições, as intenções. Os conhecimentos e a familiaridade com o tema são uma alimentação antecipada e formam o sistema perceptual, guiando seleções estratégicas. Eles configuram o terreno onde frutificará a base textual, pois não se pode supor um leitor ou ouvinte com ponto cognitivo zero, por mais imaturo e inexperiente que seja. Imagino que estes aspectos poderiam ser ainda melhor entendido com a proposta teórica de Dascal (1985, p.195-8), apresentada em sua investigação a propósito da má compreensão de enunciado. (p.53)




Conclusão:

• Todo texto se apresenta como uma rede, constituída por vários fios, tais como a organização gramatical, a estrutura léxica, as informações objetivas, as pressuposições, as intenções, os conhecimentos prévios de mundo, etc.

• Quando o leitor/ouvinte entra em contato com um texto escrito ou oral, ocorre uma integração ativa de conhecimentos prévios de mundo (incluso sócio-cultural) que geram uma dada interpretação.

• Logo, ato de ler não pode ser considerado como individual independente e sim um ato individual de uma prática social.

Angela Francisca Mendez de Oliveira
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Referência
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Leitura e compreensão de texto falado e escrito como ato individual de uma prática social. In: ORLANDI, E. P (org.). Leitura: perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1998. p.38-57.
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Arquivo Cultura de Travesseiro

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