400 anos de Padre Antonio Vieira


No ano de 2008 completou-se 400 anos do nascimento do Padre Antônio Vieira, glória imortal de nossas letras. Nascido em lar humilde, na Rua do Cônego, perto da Sé, em Lisboa, no dia 6 de fevereiro de 1608, foi o primogênito de quatro filhos de Cristóvão Vieira Ravasco, de origem alentejana cuja mãe era filha de uma mulata ou africana, e de Maria de Azevedo, lisboeta.

Padre Antônio Vieira foi um religioso, escritor e orador português da Companhia de Jesus. Um dos mais influentes personagens do século XVII em termos de política, destacou-se como missionário em terras brasileiras. Nesta qualidade, defendeu infatigavelmente os direitos humanos dos povos indígenas combatendo a sua exploração e escravização. Era por eles chamado de "Paiaçu" (Grande Padre/Pai, em tupi).

Antônio Vieira defendeu também os judeus, a abolição da distinção entre cristãos-novos (judeus convertidos, perseguidos à época pela Inquisição) e cristãos-velhos (os católicos tradicionais), e a abolição da escravatura. Criticou ainda severamente os sacerdotes da sua época e a própria Inquisição.

Conhecido pelos seus tantos sermões, de leitura indispensável, foi o orador mais famoso e célebre que o Brasil já teve. Entre os inúmeros sermões, alguns dos mais conhecidos e celebrados estão: o "Sermão da Quinta Dominga da Quaresma", o "Sermão da Sexagésima", o "Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda", o "Sermão do Bom Ladrão", o "Sermão de Santo António aos Peixes" entre outros.

Há um sermão pelo qual tenho admiração em especial, As lágrimas de Heráclito, ou, no original italiano A favore d'Eraclito. Escrito e proferido originalmente em italiano, em Roma, no dia 6 de dezembro de 1674, somente veio a ser traduzido para o português 13 anos depois da morte do autor.

Padre Antonio Vieira estava na Itália porque, perseguido pelo Tribunal do Santo Ofício, solicitava revisão do processo inquisitorial de que era vítima. Enquanto lá esteve, protegido pelo padre-geral, a autoridade máxima da Companhia de Jesus, e pela rainha Cristina, da Suécia, produziu 20 sermões.

Na sessão de abertura da Academia Real de Roma, foi proposta a seguinte questão: o que seria mais razoável: o riso de Demócrito, que zombava de tudo, ou o pranto de Heráclito, que por tudo chorava?

Foram convidados a pregar dois padres jesuítas: Girolamo Cattaneo e Antônio Vieira. Cada um podia escolher o lado. Vieira, gentil, pediu que o colega escolhesse primeiro e por isso ele ficou com a defesa das lágrimas, certamente mais coerente com o seu estado de alma naquele período, perseguido pelos próprios pares.

Girolamo Cattaneo começa o sermão apresentando a clássica oposição entre o Bem e o Mal: 'todo o artifício adorável, que o Mestre eterno empregou na fábrica maravilhosa do mundo, o natural ou o moral, foi tirado ou da pertinaz disputa dos elementos ou do imortal contraste entre o Bem e do Mal' (estou lendo em italiano e fazendo a tradução livre).

O italiano apresenta o riso e o pranto ligados intrinsecamente. Demócrito e Heráclito dominam a cena do mundo. É o contraste de luzes e trevas, de lamentos e risos, antíteses vividas pela dor do contínuo chorar e pela alegria do perpétuo sorrir. E conclui que Demócrito fez o juízo mais sábio, pois se não convenceu os interlocutores, pelo menos não os aborreceu.

Já o Padre Vieira vai direto ao assunto logo na abertura: 'em seu lugar apareceu o pranto porque segue e vem depois do riso'. A seguir diz que o pranto não desconfia, não, de sua causa; apenas inveja a sorte do riso. Adiante continua: 'tal é a natureza desses dois contrários. Por isso nasce o riso na boca, como eloqüente, e o pranto nos olhos, mudo'. Para Vieira, o riso é quase como o lapso da razão, o verdadeiro uso da razão dá-se no pranto. Diz que para confirmação de que o pranto é hegemônico, não quer mais prova que o mundo inteiro. 'Quem conhece verdadeiramente o mundo, chora; quem ri ou não chora, não o conhece'.


Vieira vai além e diz que cada dia que passa faz um estrago, cada hora e cada instante trazem mil infortúnios. E que os mundos de Heráclito e de Demócrito eram diferentes, mas o mundo que era o tema deles era o mesmo para os dois. 'A mim, senhores, me parece, que Demócrito não ria, mas que Demócrito e Heráclito ambos choravam, cada um a seu modo.' Artificioso, barroco, retórico, Vieira prova que Demócrito não ria!

O notável orador brasileiro dá também o exemplo do episódio ocorrido com o rei Psamnito, narrado por Heródoto. Deposto, viu em primeiro lugar que as filhas tinham sido transformadas de princesas em escravas, e não chorou com lágrimas; a seguir, viu o filho primogênito, herdeiro do trono, descalço, acorrentado, com as mãos amarradas em um freio à boca, e seus olhos continuaram secos.

Mas quando o rei viu um antigo criado pedindo esmola, começou a chorar copiosamente. E respondeu ao rei Cambises, que o interrogou, surpreso com a ausência das lágrimas nos primeiros dois casos e a abundância no último: 'domestica mala graviora sunt quam ut lacrimas recipiant', ou seja, 'os males domésticos são muito grandes para que recebam lágrimas'.

Vieira citou o trecho de cor, o original é diferente no final. Em vez de 'ut lacrimas recipiant', Heródoto escreveu 'ut possem ea deflere', 'para que eu os possa chorar'.

O célebre pregador conclui como filósofo cristão que é: 'se não tivesse perdido a felicidade em que foi criado, o homem choraria ou não?' Ele mesmo responde que os homens jamais chorariam, se fossem conservados naquele estado.

E termina o sermão assim: 'se na felicidade daquele tempo estava ociosa a potência de chorar, na miséria deste tempo esteja ociosa a potência do rir. Tenho dito'.

Seu colega disse, em vez de 'ho detto' (tenho dito), 'ho finito' (terminei), mas falou por mais onze linhas. Coisa de italiano loquaz. Deve ter feito também mais gestos do que Vieira enquanto pregava à rainha Cristina.

A primeira tradução para o português foi feita em 1709 pelo Conde de Ericeira, mas o original ficou desconhecido dos estudiosos de Vieira por cerca de 300 anos.

É de leitura imperdível. Há uma edição, com algumas imperfeições, publicada em 2001, com uma excelente introdução, fixação dos textos e notas feitas pela professora Sonia N. Salomão, ex-professora das UFRJ e da UERJ, diretora do Centro de Estudos Antônio Vieira, em Viterbo, na Itália.
Fonte: Deonísio da Silva - Revista Cult
http://revistacult.uol.com.br/website/default.asp


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