O Mito do Letramento - Angela Kleiman


O poder libertador da escrita já é predicado quando se tece o argumento de que a posse da escrita permite que o indivíduo dedique suas faculdades mentais ao exercício de operações mais abstratas, superiores.









O Mito do Letramento: ideologia que vem se reproduzindo nos últimos trezentos anos, e que confere ao letramento uma enorme gama de efeitos positivos, desejáveis no âmbito da cognição e no âmbito social.


Efeitos que garantem a manutenção das características da espécie
É muito grave [...] que haja número tão elevado de crianças sem escolas no Mundo – garantia de uma taxa acumulada de adultos ignorantes no futuro. É como se assistíssemos, neste final de século, a uma degradação do Homo Sapiens – nós e a nossa civilização. (O Globo, 4/3/1990)
 O analfabeto compreende mal o que ouve e responde de maneira bastante imperfeita às mensagens assim recebidas. O analfabeto precisa até de atenção mais aplicada ao que vê. (O Globo, 27/10/1998)

Efeitos que garantem a modernidade, a capacidade de integração na vida moderna, o igualitarismo:
Tomar um, dois, ônibus errados no mesmo dia e à meia- noite ainda se encontrar longe de casa é apenas um dos problemas enfrentados por Maria do Socorro Pereira, 39 anos, por não saber ler. Os outros vão desde lidar com dinheiro, ir ao supermercado e à farmácia, até o constrangimento e o sentimento de discriminação. Mas, sobretudo, o que mais a humilha é a sensação de dependência, por precisar da ajuda de outras pessoas até para preencher as fichas nas empresas onde procura trabalho. (Jornal da Tarde, 8/1/1990)

        Efeitos que determinam a ascensão e mobilidade social: 
Cada um tem um sonho que no fundo se funde num só: conseguir ascender socialmente através da garantia de um emprego melhor. “Sou faxineira e o que faço não exige estudo. Mas eu não quero ser faxineira a vida inteira”, diz Clemilda Maria dos Santos, que só agora pôde frequentar a escola. (A Gazeta, 18/3/1990)

Efeitos nos macroprocessos de desenvolvimento econômico:
Os problemas causados pelo analfabetismo são as principais razões do ciclo permanente de pobreza e subdesenvolvimento em que muitos países se encontram. (Correio Brasiliense, 7/9/1989) 
Agente necessário no processo de emancipação da mulher:



Não é difícil de entender que a própria emancipação da mulher seja função da escolarização: enquanto os conhecimentos úteis se transmitem só dentro do lar e ligados à figura materna, também se assiste à reprodução da discriminação em razão do sexo.(O Globo, 4/3/1990)

Agente necessário para o avanço espiritual:

O analfabetismo inibe o progresso e a produtividade, impede o avanço cultural e espiritual, e ajuda a manter a dependência crônica de sociedades inteiras.(Correio Brasiliense, 7/9/1989)
 Agente necessário para a distribuição da riqueza:
O mapa histórico da entrada da Europa no processo de industrialização é o próprio mapa da difusão da instrução: em meados do século XIX a parte industrialmente mais avançada da Europa (Inglaterra e França) contava de 30 a 40% de analfabetos adultos; países periféricos como Itália, Espanha, Portugal e Grécia ficavam entre 60 e 70%, enquanto no Leste (países balcânicos, Polônia e Rússia), o percentual era de 90 a 95%. (O Globo, 4/3/1990)



Trata-se de uma grande gama de consequências para cuja postulação não existe evidência histórica. Não existe evidência para a correlação entre letramento universal e desenvolvimento econômico, igualdade social, modernização, etc.

São os mais pobres, os mesmos que não puderam participar do banquete do milagre, aqueles que fazem crescer os índices de analfabetismo. E não são pobres porque são analfabetos. São analfabetos porque são pobres. (Sérgio Haddad, “O analfabetismo no Brasil”, na Folha de S. Paulo, 1989)



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