Um Poeta de Amplos Recursos - Edgar Allan Poe

Allan Poe - Cultura de travesseiro

Há alguns dias publiquei o artigo Contos Marcantes - Meus Contos Inesquecíveis, no qual proferi minhas considerações sobre o gênero. Falar em contos sem citar Edgar Allan Poe é tarefa mal cumprida. Poe não só criou o romance policial e a ficção científica, como também elevou os contos de terror á categoria literária.

Grandes nomes da literatura universal, tais como os maiores contistas franceses Gautire, Merimée e Maupassant, foram influenciados por este gênio da arte literária. Também o detetive mais famoso da humanidade, Sherlock Holmes do autor Conan Doyle, foi calcado sobre Detetive Dupin, personagem criado por Poe.

Não foi sem mérito que Allan Poe alcançou todo este prestígio literário. Apesar de a base de sua obra em prosa apóiar-se em anomalias da natureza humana, no mistério e na literatura fantástica, esta adotada por ninguém menos que Kafka, o escritor "maldito" penou, mas caiu nas graças do grande público e marcou seu nome na história da literatura.

Agora quero tratar da poesia de Edgar Allan Poe. Sim, Poe também é poeta, e dos grandes e foi, na verdade, nesta condição que o contista alçou-se na literatura. Na poesia Poe também influenciou poderosos poetas, tendo em Charles Baudelaire o grande divulgador de sua obra. Além de Baudelaire, outros nomes de peso foram influenciados pelo escritor poeta: Verlaine, Rimbaud, Valéry, Júlio Herrera e Augusto dos Anjos, além do compositor Ravel que confessou sofrer a sua técnica musical uma forte influencia das poesias de Poe.



POEMAS DE EDGAR ALLAN POE


O CORVO
Tradução de Fernando Pessoa (1924)

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,

Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.

É só isto, e nada mais".

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.

Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.

Isso só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.

"É o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,

Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."

Disse o corvo, "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,

Com o nome "Nunca mais".

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".

Disse o corvo, "Nunca mais".

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais

Era este "Nunca mais".

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,

Com aquele "Nunca mais".

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,

Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"

Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!

Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"

Disse o corvo, "Nunca mais".

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"

Disse o corvo, "Nunca mais".

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,

Libertar-se-á... nunca mais!



ANNABEL LEE
Tradução de Fernando Pessoa

Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.

Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor --
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
a ambos nós invejar.

E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.

E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.

Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.

Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.



LINHAS SOBRE A CERVEJA

Cheio de espuma e âmbar misturados
Esvaziarei este copo novamente
Visões as mais hilariantes embarafustam
Pela alcova de meu cérebro
Pensamentos os mais curiosos fantasias as mais extravagantes
Ganham vida e se dissipam;
O que me importa o passar das horas?
Hoje estou tomando cerveja.





Não fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar de fonte igual à deles;
e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que acordava
o coração para a alegria.
Tudo o que amei, amei sozinho.
Assim, na minha infância, na alva
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério.
Veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;
e dos relâmpagos vermelhos
que o céu inteiro incendiavam;
e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,
só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demônio, ante meus olhos.



O VALE DA INQUIETUDE

Dantes, silente vale sorria.
Era um vale onde ninguém vivia.
Haviam todos partido em guerra,
deixando os doces olhos de estrelas
noturnamente velarem pelas
flores formosas daquela terra,
em cujos braços, dia após dia,
a luz vermelha do sol dormia.
Não há viajante que, hoje, não fale
sobre a inquietude do triste vale.
Lá, agora, tudo é só movimento,
exceto os ares, pesando, adustos,
nas soledades de encantamento.
Ah! nenhum vento move os arbustos
que vibram como as ondas geladas
em torno às Hébridas enevoadas!
Ah! nenhum vento essas nuvens guia,
murmurejantes, nos céus insanos,
e que se arrastam, por todo o dia,
sobre violetas, que alguém diria
serem milhares de olhos humanos,
e sobre lírios, de haste pendida,
chorando em tumba desconhecida,
tremendo; e sempre caem, com o perfume,
gotas de orvalho do flóreo cume,
chorando; e desce, nas hastes frias,
um pranto eterno de pedrarias.



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Comentários

  1. Olá Ângela.
    Tem razão, em qualquer lista de contos marcantes e inesquecíveis tem que ter Allan Poe. Um mestre do suspense, do terror melancólico, sempre nos trazendo os obscuros labirintos da mente humana.

    Abraços,
    Berenice

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  2. Olá berenice, que alegria encontrar seu comentário novamente... Fico imensamente grata pela sua visita e participação.
    Para mim Poe é um dos melhores contistas da literatura. Como poeta acho incrível a estruturação e a forma milimétricamente calculada de suas composições. Peguei o poema o corvo para escandir e é espantoso a regularidade de sons, sílabas e métricas...
    Obrigada mais uma vez por suas visitas.
    Um gtande abraço,
    Angela Mendez.

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